O Fugitivo, a Trajetória do Dr. Richard Kimble


Por Fernanda Furquim

O Fugitivo é apontada por historiadores da TV como sendo uma das primeiras, senão a primeira série a introduzir uma trama contínua que exigia um final. A história de um homem acusado por um crime que não cometeu conquistou uma geração, tornando-se também, dizem, a primeira a prender o interesse de uma audiência internacional, ávida por descobrir o que aconteceria com o personagem. O último episódio registra uma das maiores audiências da história da televisão americana até os dias de hoje. Com 72% da audiência em seu horário, a série fica atrás do final de Mash (com 77%) e do episódio Quem Atirou em JR, de Dallas (com 76%), entre as produções do formato seriado de TV.
O enredo de O Fugitivo apresenta a luta do menor contra o maior (Davi contra Golias), neste caso, um inocente enfrentando o descaso e o poder do Estado, que é retratado como vilão por ignorar as necessidades ou a realidade do indivíduo. A série é uma adaptação de duas histórias. Uma delas é Os Miseráveis, livro de Victor Hugo, no qual temos a relação entre Jan Valjean e o Inspetor Javert. O primeiro, acusado de roubo, foge da prisão, sendo implacavelmente perseguido pelo segundo. A outra história adaptada por O Fugitivo é um drama real, muito embora seu autor, Roy Huggins, tenha negado até o fim da vida que a série tenha qualquer referência com o caso do Dr. Samuel Holmes Sheppard, ocorrido em 1954.
Mas, segundo Ed Robertson, no livro The Fugitive: Recaptured: The 30th Anniversary Companion to a Television Classic, antes da série ser produzida, o roteiro passou pelo Departamento de Erros e Omissão do canal ABC, que tinha como objetivo detectar falhas técnicas, de continuidade, de criação de personagens, de fatos históricos ou de referências. Foi assim que a equipe detectou a semelhança entre O Fugitivo e o caso de Sheppard, médico em Cleveland, Ohio, acusado de assassinar a esposa. Mesmo alegando que a mulher foi morta por um homem ruivo que ele vira fugindo do local, Sheppard foi condenado à prisão perpétua. No enredo original, Kimble alegava ter viso um homem ruivo fugindo da cena do crime. Sem tempo para alterá-lo radicalmente, a produção decidiu mudar apenas as características físicas do suspeito visto por Kimble. Ao invés de cabelos ruivos, ele seria um homem que teria só um braço. E, assim, o personagem entrou para a cultura popular.
David Janssen como Richard Kimble e
Diane Brewster como sua esposa Helen, vista em flashbacks
O Fugitivo foi criada em 1960 com base nos filmes noir, nos quais os heróis são acusados de crimes que muitas vezes não cometeram e, por isso, precisam provar sua inocência. A série foi inicialmente oferecida à 20th Century Fox, que na época não tinha um canal, vendendo seus produtos a diferentes emissoras. Mas o estúdio recusou o projeto alegando se tratar de uma produção antiamericana ao introduzir um herói condenado injustamente. A situação do personagem levantava dúvidas quanto ao sistema penal americano, que na história é visto como uma instituição falível. Algo inaceitável para muitos executivos do estúdio na época. Sob contrato da Fox, Huggins precisou engavetar seu projeto. Mas quando seu contrato terminou em 1962, o canal ABC, que na época buscava projetos inovadores, entrou em contato com Huggins, pedindo que lhe apresentasse suas ideias para novas séries. A reação dos representantes da ABC foi a mesma que a da Fox. Ofendidos com o argumento, eles recusaram o projeto. No entanto, o diretor do canal, Leonard Goldenson, amigo de Huggins, gostou da proposta. Assim, ele tomou uma decisão drástica e perigosa, que poderia por em risco sua carreira: encomendar a produção de 30 episódios para a primeira temporada de O Fugitivo.
Passada essa fase, a série sofreu um novo revés. Na época, Huggins estava fazendo pós-graduação em Filosofia e Ciências Políticas e não tinha interesse em abandonar os estudos para produzir O Fugitivo. Assim, Quinn Martin, que ficara famoso pela série Os Intocáveis e que recém criara sua própria empresa, foi chamado para assumir o cargo. A Huggins coube a função de supervisor de roteiros, os direitos autorais, e a percentagem de venda e merchandising.
Para que o personagem do médico foragido pudesse ser aceito pelo público da época, e pelos anunciantes, sua personalidade foi construída de forma a torná-lo extremamente ético e capaz de colocar sua vida e sua segurança em perigo para salvar uma pessoa necessitada. No primeiro episódio, não vemos a história do crime ou do processo jurídico, os quais são apresentados na abertura repetida semanalmente, embora esta mesma abertura saliente os ‘defeitos’ da série, ao acusar o sistema judiciário de ter falhado com o médico. O texto da abertura dizia: “Richard Kimble, uma vítima inocente da justiça cega. Julgado por engano como o assassino de sua esposa. Teve sua execução adiada pelo destino quando um desastre de trem o livrou da câmara da morte. Numa solidão desesperadora, está livre para se esconder, mudar de identidade, tentar inúmeros empregos e para procurar o homem de um braço só que viu fugindo da cena do crime. E está livre para tentar escapar da perseguição implacável do policial obcecado por sua captura”. Vários episódios também questionam o sistema quando introduzem policiais corruptos ou que abusam de sua autoridade. A própria motivação do Tenente que persegue o fugitivo ao longo da série é apresentada como sendo pessoal. Embora utilize a desculpa de que está apenas tentando cumprir a lei, ele demonstra claramente ser movido por um sentimento de vingança e de orgulho ferido.
Dr. Richard Kimble (E) e Inspetor Gerard.
Ao longo da série, os roteiristas utilizaram vários truques para que o público aceitasse o personagem, garantindo ao telespectador que estavam acompanhando as aventuras de um inocente. Entre eles, a decisão de levar Kimble a buscar empregos que não exigiam escolaridade. Assim, qualquer pessoa poderia se identificar com o médico, ao vê-lo realizar trabalhos manuais e assalariados. A cada episódio, Kimble ajudaria uma pessoa em perigo que, muitas vezes, retribuiria o favor ajudando-o a fugir da cidade quando sua presença no local se tornasse perigosa. No primeiro episódio, ele é um barman, que ajuda uma mulher vítima de violência doméstica. Dessa forma, logo na primeira história, Kimble já conquista a audiência feminina. Seu sucesso com o público feminino levou a produção a oferecer muitos episódios em que Kimble é salvo por mulheres. Este mesmo público foi diversas vezes presenteado com a introdução de mulheres fortes que cruzaram a vida de Kimble, muitas delas abandonando a tradicional postura de vítimas, bibelôs, ignorantes, esposas dedicadas ou estorvos para assumirem atitudes importantes e determinantes diante de problemas que enfrentavam, expondo opiniões claras e bem embasadas, levando-as, várias vezes, a superar os personagens masculinos.
Entre os atores que teriam sido cotados para interpretar Kimble estão Robert Lansing, Anthony Franciosa e James Franciscus. Mas quando Martin assumiu a produção da série, já tinha em mente quem seriam os atores que interpretariam Kimble e Phillip Gerard, o Inspetor de polícia que persegue o médico fugitivo: David Janssen e Barry Morse, respectivamente. Com o sucesso da série e a aceitação do público de que Kimble era inocente, Morse se transformou no ‘homem mais odiado dos EUA’. Em função disso, o canal chegou a cogitar a troca do ator. Mas os produtores convenceram a ABC a manter Morse no papel.
O Fugitivo estreou em 17 de setembro de 1963. As três primeiras temporadas foram filmadas em preto e branco e a última em cores. Ao total, a série teve quatro temporadas e 120 episódios, que apresentavam uma história diferente a cada semana. Mas, como pano de fundo, a trajetória do Dr. Richard Kimble se desenvolve de forma a levá-lo, em várias ocasiões, a localizar o homem de um braço só, o que reforça sua determinação de continuar sua luta para provar sua inocência. A relação entre Kimble e Gerard também sofre mudanças ao longo dos episódios. Inicialmente implacável e incrédulo quanto à sua inocência, os esporádicos encontros do inspetor com Kimble fazem com que surjam dúvidas de sua culpabilidade. No episódio final, as mudanças que Gerard sofreu são determinantes para a solução do caso.
Bill Raisch, ator que perdeu um braço durante a 2ª Guerra Mundial
Ao longo de sua trajetória, Kimble passa por diversas dificuldades pessoais e de relacionamentos, mas sempre mantém sua determinação de encontrar o homem que viu fugindo do local do crime. Ao longo deste tempo, ele se apaixona algumas vezes e chega a pensar em reiniciar sua vida com outra identidade, mas algo sempre acontece para que decida continuar sua fuga e sua busca. A solidão é sua maior companheira e professora. Mantendo-se cabisbaixo e sério, sempre tentando não chamar a atenção e nem se envolver em situações que possam colocá-lo em destaque, Kimble observa o comportamento humano à sua volta. As pessoas que o cercam têm problemas, alguns tão graves quanto o dele; muitas desmoronam, se entregam às paixões ou ao desespero.
Como observador capaz de se manter à distância, embora esteja envolvido com as pessoas, ele se torna na hora H o anjo da guarda ou salvador daqueles que precisam. Sua moral permanece intacta, muito embora sofra conflitos que o levam a questionar qual a melhor decisão a ser tomada. Em especial, nos momentos em que salvar uma vida ou estender a mão a alguém significaria se expor e arriscar sua própria segurança. Também tem episódios, como A Clean And Quiet Town, em que ele se envolve com o submundo do crime para conseguir chegar perto do homem de um braço só. Os sentimentos de Kimble são um movimento interno que Janssen deixa transparecer em seu olhar e nas suas expressões (por vezes no tom de voz); poucas vezes os percebemos em suas palavras ou gestos. Em momentos em que se afasta de uma situação ou pessoa, podemos ver em seu rosto o conflito emocional que o personagem sofre para tomar aquela determinada atitude.
A fuga de Kimble o leva a se afastar de sua família, que aparece em alguns episódios ao longo da série. Sua irmã Donna (Jacqueline Scott) é quem está determinada a provar sua inocência. Embora seja constantemente vigiada pela polícia, ela consegue driblá-la várias vezes para se encontrar com Kimble em locais previamente agendados via telefone ou contato indireto. Nestes momentos, vemos que, inicialmente, ela e seu marido são os únicos que estão determinados a provar a inocência de Kimble. Seu pai e irmão mais novo se mantêm afastados. Dr. John Kimble (Robert Keith) sente-se humilhado pelo que aconteceu com o filho; além de triste e indignado com sua situação atual. Já Ray (Andrew Prine) o despreza porque sofre as consequências de ser irmão de um condenado.
Por outro lado, Gerard tem um olhar, expressão e atitudes frias e calculistas. Tenta se manter acima dos conflitos pessoais para atingir seus objetivos. Mas Morse transmite em suas expressões e olhares a urgência do personagem em prender Kimble e limpar sua honra. Afinal, o condenado escapou sob seus cuidados. Assim, Gerard compromete sua relação com a família em prol de sua missão. O peso que seu trabalho tem em sua vida pessoal é retratado no episódio em duas partes Landscape with Running Figures, no qual sua esposa (Barbara Rush), farta de vê-lo obcecado pela captura de Kimble, decide deixá-lo. Ironicamente, ela encontra Kimble durante sua viagem. Mas, por ter sofrido um acidente, que a deixou temporariamente cega, ela não o reconhece (e Kimble não a conhecia). A partir deste encontro, Marie passa a compreender melhor a obsessão de seu marido. Embora ela tenha dúvidas de que Kimble seja culpado, ela espera que sua captura liberte Gerard. Este, por sua vez, se sente intimamente agredido por Kimble, que invadiu sua privacidade ao se aproximar da esposa. O mesmo acontece no episódio Nemesis, em que Kimble encontra o filho de Gerard, Philip Júnior (Kurt Russell). Quando seus dois mundos colidem, Kimble passa a fazer parte de ambos, tomando o controle de sua vida por completo.
(E-D) Fred, Kimble e Gerard
A convicção de que o médico é culpado pelo assassinato de sua esposa é abalada sempre que Gerard consegue capturar Kimble, o que ocorre algumas vezes ao longo da série. Inicialmente, ele acredita que Kimble, consumido pela culpa, criou uma história em sua cabeça e agora acredita nela. Mas o contado direto com ele o leva a observar sua conduta, a escutar o que diz e a forma como se manifesta. Mesmo quando chega tarde para capturar Kimble, Gerard se surpreende com os testemunhos daqueles que o ajudaram a escapar. Ele não compreende o que faz uma pessoa honesta e comum ajudar um condenado à morte a fugir. Apesar de, no seu íntimo, começar a acalentar dúvidas quanto à culpa de Kimble, Gerard é um policial que cumpre a lei e seu dever é entregá-lo à justiça, custe o que custar. Ao longo da série, ele passa a estudar o comportamento de Kimble em sua fuga, a criar um padrão de comportamento, o que o leva muitas vezes a se aproximar de seu fugitivo ou até mesmo a capturá-lo.
A série chegou ao fim a pedido de Janssen que, cansado ‘de fugir’, pediu que encerrassem a produção. Martin também não estava mais podendo dedicar-se ao trabalho. Na época, sua irmã tinha sido diagnosticada com câncer. Decidido a passar mais tempo ao lado dela,  Martin pediu para se afastar. Assim, um episódio final foi escrito para encerrar a trajetória de Kimble e Gerard. O Julgamento, episódio dividido em duas partes, dá ao público uma conclusão definitiva. Muito embora a expectativa da audiência fosse assistir a prisão de Fred (Bill Raisch), o homem de um braço só, os roteiristas conseguiram criar situações que levantavam dúvidas quanto a ele ser o verdadeiro culpado, mantendo o suspense até a última cena.
O roteiro foi ‘guardado a sete chaves’. Funcionários, a equipe de produção e os atores assinaram um documento comprometendo-se a não revelar o final. Mas, poucos dias antes da primeira parte de O Julgamento ser exibida, um jornal publicou uma declaração que teria sido feita por Janssen: Kimble era o verdadeiro culpado e, na última cena, retira seu braço mecânico provando ser o homem de um braço só. O canal não deu importância à declaração, visto não ser verdadeira. Mas ela se espalhou rapidamente fazendo com que o público começasse a criar rejeição ao final da série. Temendo perder audiência, o canal precisou fazer uma declaração oficial negando a informação passada pelo jornal. O ator tinha realmente feito essa declaração a amigos. Mas tirada do contexto, o jornal ignorou o fato de que ele estava apenas brincando.
O sucesso da série levou à produção de outras que se assemelhavam no enredo: um herói em fuga por algo que não cometeu, perseguido por alguém, atravessa os EUA encontrando-se com diversos tipos de pessoas, vivendo diferentes situações, mas sempre tendo que deixar a cidade. Entre elas, creio que a mais famosa tenha sido O Incrível Hulk, produzida entre 1977 e 1982. A adaptação de HQ da Marvel colocou o Dr. David Bruce Banner/Hulk praticamente na mesma situação de Kimble, já que também se inspirou em Os Miseráveis para construir personagens e história.
Harrison Ford na versão cinematográfica da série

Em 1993, a Warner Brothers produziu a versão cinematográfica de O Fugitivo, com roteiro escrito por Huggins em parceria com David N. Twohy e Jeb Stuart. O filme é uma das poucas incursões de uma série no cinema considerada bem sucedida.
Estrelado por Harrison Ford, a história explorou a tensão psicológica e a ação, diferenciando-se da série, que adotou uma narrativa mais dramática e intimista, voltada aos relacionamentos humanos e sociais. Mas seu grande trunfo foi não tentar adaptar personagens ou episódios, limitando-se a contar a história que na série era vista apenas na abertura. Assim, temos o crime sendo cometido, a acusação, a grande fuga de Kimble, culminando com o final, que se assemelha ao da série. Ocorreram apenas algumas mudanças de situações e motivações dos personagens envolvidos. O que é justificável, visto que, na série, a motivação de um dos personagens-chave na solução do crime envolve questões morais inerentes da época. O sucesso desta produção fez surgir um segundo filme em 1998, desta vez estrelado pelo personagem de Gerard (vivido nos cinemas pelo ator Tommy Lee Jones). Em U.S. Marshals – Os Federaiscom roteiro escrito por Huggins e John Pogue, temos o tenente perseguindo um novo fugitivo da justiça, ao lado de um agente do FBI (Robert Downey Jr.).
Tim Daly como Richard Kimble
O sucesso da versão cinematográfica levou a rede CBS a apostar em um remake da série. Em 2000 estreou uma nova versão de O Fugitivo, agora estrelada por Tim Daly (Kimble), Mylketi Williams (Gerard) e Stephen Lang (o homem de um braço só). Nesta produção, a história introduz a família de Helen Kimble (Kelly Rutherford), a esposa assassinada, como parte da trama. Com produção executiva de Huggins, a série não conseguiu passar da primeira temporada, com 22 episódios produzidos.
Apesar do sucesso e de sua importância histórica, esse clássico é pouco reprisado pela TV brasileira. Uma de suas últimas exibições foi pela Tele UNO, antigo canal AXN, na década de 1990. Na versão brasileira, Kimble foi dublado por Carlos Alberto de Mendonça e Gerard por Alan de Lima e depois por Carlos Leão.
Em 1999, a Paramount adquiriu os direitos de distribuição da série original, que foi lançada em DVD nos EUA entre 2007 e 2010. No Brasil, a primeira temporada foi recém lançada pela Vinyx, distribuidora independente que está se especializando em disponibilizar no mercado brasileiro séries, minisséries e filmes antigos. Lamentavelmente, o lançamento não inclui a versão dublada. Os trinta episódios, distribuídos em oito discos, são oferecidos apenas na sua versão original, acompanhados de legendas em português e inglês, na Região 4. Como material Extra, o Box inclui os Documentários: Goodbye Warner-Bros, Hello DePatie Freleng e Of Aardvarks, Ants, Inspector and Cranes, que pelo título parecem não ter nada a ver com a série. No Box americano, a primeira temporada (que foi dividida em dois volumes) não tem material Extra. Apenas a quarta temporada traz uma entrevista com o compositor Dominic Frontiere.
(E-D) Stephen Lang, Mylketi Williams e Tim Daly no remake de O Fugitivo

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A primeira versão deste texto foi publicada em dezembro de 2010 no Blog Nova Temporada da VEJA.com, no qual fui colunista entre 2010 e 2016.

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