A Série que Levou Alfred Hitchcock para a TV
Por Fernanda Furquim
A década de 1950 registrou a chegada de dois grandes nomes do cinema na TV americana: Walt Disney e Alfred Hitchcock. O primeiro entrou via ABC com o programa Disneylândia em 1954 e, em 1957, com Zorro. O segundo chegou via CBS com Alfred Hitchcock Presents, que estreou em 1955.
A entrada de Disney na TV provocou algumas mudanças no comportamento dos estúdios de cinema em relação à televisão, bem como dos próprios canais, que passaram a cogitar a possibilidade de atrair outros nomes importantes do cinema. Tendo em vista a receptividade do programa Disneylândia, não apenas pelo fator audiência, mas no lucro que os produtos agregados geravam, a participação de produtores que soubessem explorar financeiramente o veículo e seus programas era bem-vinda. Além do lucro, existia o fator popularidade. A presença de Disney na TV tornou sua imagem e suas produções conhecidas por aqueles que não acompanhavam suas produções no cinema. Muitas delas até então tinham apenas o rádio como veículo de entretenimento, e agora adotavam a TV.
Embora os grandes estúdios organizassem campanhas para difamar a programação televisiva, desde o final da década de 1940 até este momento eles lucravam com este veículo através da produção de comerciais ou venda de antigos filmes, que eram exibidos no horário da tarde. A produção da Disney, em especial Davy Crockett (exibida dentro do programa Disneylândia), mostrou que a televisão poderia gerar um lucro ainda maior, com a venda de produtos agregados, com acordos milionários entre estúdio e canais, os quais desejavam nomes importantes para atrair anunciantes, e com a venda para o mercado de syndication, ou seja, canais regionais, que existiam em maior número que os principais canais da época (NBC, ABC, CBS e DuMont). A venda para Syndication permitira aos estúdios realizar um maior número de acordos que seriam diferenciados, pois dependeriam da penetração do canal em cada área. Além disso, a venda para o mercado televisivo internacional também era um atrativo a mais.
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| Vera Miles e Ralph Meeker em Revenge |
A chegada de Hitchcock fez gerar mais credibilidade ao veículo, que até então se apoiava na receptividade crítica dos teleteatros para conquistar um público mais exigente. Disney era um produtor de filmes essencialmente infantis que poderiam atrair o interesse do público adulto, mas, ainda assim, produções voltadas para as crianças. Hitchcock era um diretor de produções adultas, respeitado por seu público, pela crítica, pela mídia, pelos atores, pelos roteiristas e pelos estúdios nacionais e internacionais. Sua chegada à TV fez os grandes estúdios perceberem que poderiam manter sua ‘dignidade’ e ainda obter lucro. Para completar o quadro, a imagem de Disney e de Hitchcock no vídeo, apresentando seus programas semanalmente, criava uma relação afetiva entre eles e os telespectadores que refletia direta e positivamente na bilheteria de seus filmes.
Hitchcock era um dos muitos profissionais neste período que almejava entrar nesta mídia. Antes mesmo da TV existir ele já rondava o mercado que esta mídia exploraria. Na década de 1940, por exemplo, Walter Wagner, produtor do filme Correspondente Estrangeiro/Foreigh Correspondent, dirigido por Hitchcock, entrou em contato com a rádio CBS para oferecer um projeto de série antológica de mistério (formato muito popular no rádio), a qual teria episódios narrados por um imitador de Hitchcock. Ao longo do programa, seriam feitas chamadas de divulgação do próximo filme do diretor. O projeto, que recebeu o título de Suspense, teve um piloto transmitido no dia 22 de julho de 1940. Mas a série só foi encomendada dois anos mais tarde. Seu sucesso a levou a permanecer no ar por vinte anos, sendo que alguns filmes mais antigos de Hitchcock chegaram a ser adaptados para este formato com episódios em meia-hora.
A boa receptividade desta produção levou o diretor a se interessar em ele mesmo apresentar um programa próprio. Mas, ao invés de fazer isso com Suspense, que já estava no ar identificada com a voz de um imitador, ele gravou um novo piloto chamado Once Upon a Midnight, o qual foi oferecido à rádio ABC. Colocando-se à disposição para narrar cada episódio com histórias e atores selecionados por ele, a série apresentaria tramas que giravam em torno de um crime, mas cada episódio terminaria abruptamente para deixar o ouvinte esperando até a semana seguinte para saber como terminaria. Apesar da presença de Hitchcock, a série não foi produzida. O diretor faria uma nova tentativa em 1947, desta vez com o projeto de The Alfred Hitchcock Show,que apresentava a mesma proposta de Once Upon a Midnight. Um piloto chegou a ser gravado e apresentado aos executivos da rádio ABC, que o descartaram.
Em 1949, Hitchcock foi convidado pela Mutual Radio Network para narrar os últimos episódios da série radiofônica de mistério Murder by Experts. Nesta época, o diretor já tinha sido narrador de um episódio do programa Favorite Story, produzido por Frederick Ziv e levado ao ar em rádios de syndication. O atrativo deste programa era a presença de uma celebridade que escolhia uma história favorita para narrar em um episódio. Hitchcock escolheu Jekyl & Hyde.
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| Joseph Cotten em Breakdown, um dos episódios mais marcantes da série. |
Apesar das tentativas de Hitchcock de explorar o potencial dos programas radiofônicos, tudo indica que nenhum canal de TV pensou em lhe oferecer espaço para uma série. Até que, no início da década de 1950, Lew Wasserman, um agente da MCA (empresa que representava os interesses de Hitchcock) convenceu os diretores da empresa a investir mais profundamente no novo veículo. A ideia era a de oferecer seus clientes à TV, onde eles estrelariam programas, que poderiam ser humorísticos, de variedades, teleteatros ou séries. Sabendo do interesse de Hitchcock de entrar na nova mídia e vendo o resultado conquistado por Disney, Wasserman sugeriu à rede CBS investir em uma produção antológica de mistério, no mesmo formato daquelas que existiam no rádio, apresentada pelo ‘mestre do suspense’ (que nesta época teria que lidar com a baixa bilheteria conquistada pelo filme O Terceiro Tiro/The Trouble With Harry, lançado no mesmo mês).
Hitchcock aceitou a proposta desde que a produção não interferisse com sua carreira no cinema. Assim, uma equipe de produção e técnica escolhida por ele foi formada. Seriam eles que fariam todo o trabalho da seleção de contos de mistério já publicados, adaptação do roteiro, escalação de elenco, produção, filmagem e pós-produção das histórias. No contrato, Hitchcock se comprometia a gravar a introdução e fechamento de cada episódio e a dirigir um número indeterminado de histórias que, no final, somaram-se dezoito das 453 produzidas (360 para o formato em meia-hora e 93 para a versão com episódios de uma hora). A linha de produção seguia a seguinte cartilha: cada conto ou livro selecionado pela equipe era avaliado pelo diretor, que escolhia as histórias que seriam filmadas (era neste momento que decidia qual episódio iria dirigir). Depois de selecionadas, as histórias eram enviadas ao principal anunciante (a Bristol-Meyers), que aprovava ou não sua produção. Segundo John McCarty e Brian Kelleherem seu seu livro Alfred Hitchcock Presents, An Illustrated Guide To The Ten-Year Television Career of The Master of Suspense, a empresa de remédios censurava qualquer texto que apresentasse alguém sendo morto ou prejudicado por ingestão de comprimidos. Mais tarde, quando a Lincoln-Mercury, empresa do ramo de automóveis, assumiu o posto de principal anunciante, os roteiros com mortes relacionadas a carros é que eram censurados (já as mortes por comprimidos estavam liberadas).
As introduções e fechamentos de Hitch eram gravados uma vez por mês, totalizando seis episódios por gravação. Seus textos eram escritos por James Allardice (1919-1966), que seguiu as instruções de Hitchcock para moldar sua participação de acordo com o humor explorado em O Terceiro Tiro. Em sua participação, o diretor ironizava os intervalos comerciais, algo raro na TV na época, mas já feito no rádio por comediantes. O texto era passado para aprovação prévia de Hitch e de um representaste da Bristol-Meyers, que não se opunha às ironias. O único cuidado que tinham era o de evitar que Hitch pronunciasse o nome de qualquer produto existente no mercado. Isto porque, na venda a canais regionais, estes tinham o direito de negociar anúncios com empresas locais. Vale mencionar que o sucesso de Hitchcock como apresentador da série incentivou o diretor a estrelar vários trailers de seus filmes produzidos nas décadas de 1950 e 1960.
A série estreou no dia 2 de outubro de 1955, chegando à segunda temporada em quinto lugar na audiência. Segundo o livro The Alfred Hitchcock Companion, de Martin Brams Jr e Patrick Wikstrom, para estrelar sua própria série Hitchcock fez um acordo com a MCA, que se tornou a produtora do programa. O contrato previa que o diretor serviria de coprodutor através de sua empresa, a Shamley Productions. Por este acordo, ele receberia 129 mil dólares por episódio, sendo que os direitos de produção reverteriam para ele após a primeira exibição. Isto significava que Hitchcock teria o lucro da venda para canais regionais e internacionais, enquanto que a MCA dividiria com a CBS o lucro da venda de espaços publicitários da primeira exibição. Em 1964, Hitchcock vendeu à MCA os direitos de produção da série (e do filme Psicose) em troca de 150 mil ações da empresa, transformando-se no terceiro maior acionista da MCA. Dizem que Hitchcock também foi sócio do canal britânico ITV, que estreou no Reino Unido em 1955. Desta forma, com o lucro obtido tanto na TV americana quanto na inglesa, o diretor teria conquistado uma liberdade criativa e de negociação junto aos estúdios de cinema que a grande maioria de seus colegas não tinha.
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| Billy Mumy em Bang. You’re Dead |
Produzida entre 1955 e 1965 Alfred Hitchcock Apresenta trouxe para a TV uma linguagem diferenciada da grande maioria das séries que vinham sendo exibidas até então. Nesta produção antológica, sem personagens e situações fixas, temos os protagonistas cometendo crimes ou envolvendo-se em situações que levam à uma atitude criminosa, sendo que os episódios encerram com uma reviravolta na trama. Em uma época em que o herói precisava ser honesto e sempre representar a justiça, Hitchcock antecipou em quase 50 anos a abordagem que viria a ser explorada pelas séries de TV americanas.
No primeiro episódio, estrelado por Vera Miles e Ralph Meeker, temos a história de um homem que, buscando vingar o estupro de sua esposa, que ficou psicologicamente perturbada, decide matar o agressor. Outros episódios apresentam tramas geralmente relacionadas a assassinatos (incluindo parricídio, serial killers, mortes de esposa/marido/amante ou vítimas de acidentes provocados), mas também temos episódios que lidam com doppelganger, assaltos, paranóia, conspiração, insanidade, traições e chantagens, entre outros atos criminosos, apresentados em narrativas que variam entre dramas psicológicos, terror gótico e suspense policial, com toques de drama sobrenatural e de comédia de humor negro, levantando vários dilemas morais. As sete primeiras temporadas tiveram episódios de meia-hora de duração; da oitava à décima, eles passaram a ter uma hora de duração sob o título de The Alfred Hitchcock Hour. As seis primeiras temporadas foram produzidas para a rede CBS; a partir da oitava, ela foi produzida para a rede NBC.
A série se transformou em inspiração e laboratório para que Hitchcock e sua equipe experimentassem recursos de câmera e de desenvolvimento de cenas, as quais mais tarde seriam utilizadas em seus filmes para o cinema. Em contrapartida, Hitchcock trouxe para o formato seriado uma linguagem mais cinematográfica, visto que, até então, a câmera deste tipo de produção era mais objetiva, tendo apenas a função de passar a informação do que estava ocorrendo na trama (com raras cenas em episódios de séries ocasionais como exceção). Assim sendo, temos em vários episódios imagens mais artísticas com enquadramentos e movimentos de câmera, incluindo um que trabalha imagens congeladas (como a que foi vista no filme francês La Jetée em 1962), que eram, no máximo, mais exploradas por diretores de teleteatros.
Visto não desejar trabalhar com textos escritos especialmente para a TV, Hitchcock levou sua equipe de produção a vasculhar o mundo literário, em especial contos e crônicas, em busca de histórias para serem adaptadas. Foi assim que encontraram uma que, ao ser apresentada à Hitchcock, este se interessou em produzir uma cena em que a protagonista é assassinada no chuveiro. Buscando por um novo projeto cinematográfico e ciente de que esta cena seria censurada na TV, ele decidiu produzir aquela história para o cinema utilizando, para tanto, a mesma equipe técnica da série de TV, cenários e até movimentos de câmera que ele havia explorado em episódios que dirigiu. Assim surgiu Psicose, filme que poderia ser considerado a versão cinematográfica de Alfred Hitchcock Apresenta.
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| David Wayne (E) e Steve Brodie (D) em One More Mile To Go |
O filme foi produzido em preto e branco. Esta opção não apenas barateava o custo de produção, como também possibilitava dar um ar mais tenebroso no jogo de luz e sombras, especialmente nas cenas de assassinatos. O cenário do filme também foi compartilhado com episódios da série, com exceção do exterior do Hotel de Norman Bates, que foi construído especialmente para o filme. O exterior e interior da casa de Bates foram utilizados em diferentes episódios, com a diferença que a casa fazia parte de uma rua residencial. No filme, ela estava isolada das demais.
Algumas cenas do filme também já tinham sido utilizadas em episódios dirigidos por Hitchcock, como por exemplo a cena em que a personagem de Janet Leigh é abordada por um policial em uma moto. A mesmíssima cena (incluindo enquadramentos) foi produzida para o episódio One More Mile to Go, exibido em 1957, com o ator David Waynedirigindo o carro. O mesmo ocorreu com a cena em que Bates livra-se do corpo de Marion, afundando seu carro em um lago. Ela já tinha sido filmada para o mesmo episódio estrelado por Wayne, que se livra de um corpo indesejado.
Já a cena final de Bates na delegacia, ouvindo a voz de sua mãe em pensamento, com a câmera se aproximando em um traveling, finalizando com seu sorriso, foi filmada por Hitchcock no episódio Lamb to The Slaughter, estrelado por Barbara Bel Geddes e exibido em 1958. Nesta cena, Barbara está sentada na sala de sua casa. Tendo matado seu marido com uma perna de carneiro congelada, ela prepara um assado com a arma do crime. Quando os policiais chegam para registrar a ocorrência, ela lhes oferece o jantar. Enquanto eles comem o carneiro na cozinha, e discutem entre si qual seria a arma que matou a vítima, a câmera vai para a sala, onde encontra Barbara sentada em uma cadeira ouvindo as vozes dos policiais em off. Quando a câmera chega em um close, Barbara sorri.
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| Barbara Bel Geddes em Lamb to the Slaughter |
Muitos críticos e historiadores creditam parte do sucesso comercial de Psicose à série, visto que o filme seguia a linha narrativa e de visual popularizada por Alfred Hitchcock Apresenta. Além do mais, após cinco anos entrando semanalmente nas casas dos telespectadores, Hitchcock já tinha se transformado em uma personagem televisiva, que lhe permitiu levar um público maior para o cinema.
A produção foi cancelada em 1965, com um total de dez temporadas. Nesta época em que as séries dramáticas voltadas para o público adulto exploravam mais abertamente temas tabus com questionamento moral, a audiência de Alfred Hitchcock Apresentadeclinava (embora ainda fosse significativa). Enquanto isso, os executivos do canal precisavam lidar com o fato de que a TV estava saindo da fase preto e branco para entrar na produção a cores, o que elevaria o orçamento (o qual incluía o salário de Hitchcock). Por outro lado, Hitch já estava cansado da série, desejando encerrar sua participação.
Talvez por ser uma produção antiga e em preto e branco, Alfred Hitchcock Apresentanão é facilmente encontrada nas grades de canais ou catálogos de serviços de streaming (especialmente no Brasil onde produções muito antigas, seja para a TV ou cinema, têm sido descartadas). Mas, quem tiver interesse em conhecer, ela está disponível em DVD no mercado internacional.






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