Jane Eyre em Três Tempos
Por Flávia Furquim
Jane Eyre: Uma Autobiografia é um romance da escritora inglesa Charlotte Brontë,publicado em 1847, que narra a história de Jane, uma governanta sem atrativos físicos que, depois de uma infância atribulada, se apaixona por seu empregador, o Sr. Edward Rochester.
O romance, com elementos de naturalismo e melodrama gótico, foi inovador ao ser narrado em primeira pessoa por uma personagem feminina. Publicado sob um pseudônimo masculino, foi um sucesso comercial imediato e recebeu críticas favoráveis. Mas logo vieram desconfianças de que o autor seria uma mulher e as críticas passaram a considerar o romance “impróprio”, o que pode ter contribuído para aumentar ainda mais suas vendas.
Hoje, Jane Eyre é um clássico, fazendo parte do cânone da literatura inglesa. O livro apresenta crítica social, com um senso de moral cristã bastante pronunciado, mas também aborda relações de classe, e o que pode ser considerado um “proto-feminismo” devido à forte personalidade de Jane, que vê a si mesma como um indivíduo e não como um rótulo social (governanta, mulher, cristã, pobre ou feia).
Como não poderia deixar de ser, recebeu inúmeras adaptações para o teatro, cinema (várias delas em filmes mudos), rádio e televisão (telefilmes e minisséries), mas também óperas, balés, musicais e até uma sinfonia, sem contar outras versões literárias tais como seqüências, prelúdios, spin-offs, narrativas a partir de outro ponto de vista e grande influência em outras obras. Para esta postagem,vamos dar uma olhada em três minisséries da BBC, produzidas em 1973, 1983 e 2006. A análise contém spoilers.
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Sorcha Cusack e Michael Jayston |
O livro inicia com a narração da infância de Jane na casa de Sra. Reed, sua tia, e seus problemas com o primo John Reed. Esta parte da história fornece detalhes sobre a personalidade de Jane, que diz coisas desagradáveis quando sente que foi punida sem motivo real, um comportamento considerado repulsivo por sua tia. Sua abordagem da catequese cristã também é interessante. Ao ser ameaçada com o fogo do inferno por dizer o que pensa, e perguntada sobre como evitá-lo, não hesita em responder: “Devo cuidar da saúde e tentar não morrer!”
Após uma briga com John Reed, Jane fica de castigo no quarto vermelho, onde seu tio falecera nove anos antes, e desmaia de medo. Atendida pelo farmacêutico, Sr. Lloyd, acaba desabafando suas angústias e ele sugere a sua tia que mande a menina para uma escola. Jane passa a viver na Instituição Lowood, dirigida pelo Sr. Brocklehurst, um homem extremamente preocupado em educar suas pupilas na moral cristã através de punições, pouco conforto ou alimento. Suas amigas são Helen Burns, uma colega mais velha que sofre com tuberculose, e sua professora, Srta. Temple. Jane fica lá por seis anos como aluna e dois como professora.
Após anunciar seus serviços como tutora em um jornal, recebe oferta da Sra. Fairfax para educar a jovem Adèle Varens em Thornfield Hall, propriedade do Sr. Edward Rochester. Jane desenvolve uma relação afetiva com seu patrão, mas eventos secretos do passado dele acabam por fazê-la abandonar a casa em desespero e procurar abrigo longe dali. É quando inicia a terceira fase do romance.
Resgatada pelo clérigo St. John Rivers, que lhe arranja um trabalho como professora em uma escola de meninas, ela encontra um lar na Moor House, convivendo com ele e suas irmãs, Diana e Mary Rivers. Mas este não é o fim de seu relacionamento com Rochester, que Jane volta a encontrar depois de algum tempo.
Nas versões em filmes, tanto a parte da infância como as cenas na Moor House são geralmente encurtadas ou quase eliminadas, e a narrativa se concentra no romance entre Jane e Edward. Decisões compreensíveis, considerando-se as questões de tempo, mas que, na minha opinião, diminuem o aspecto mais interessante do livro, que é mostrar o amadurecimento da personagem e o modo inovador de como ela se posiciona dentro de sua sociedade e lida com suas limitações.
O formato minissérie é mais favorável para narrar a história completa e as duas primeiras analisadas aqui claramente tentaram incluir o máximo possível do romance original. Com cinco episódios e um total de 4 horas e 35 minutos, a versão de 1973 foi estrelada por Sorcha Cusack como Jane e Michael Jayston como Rochester. A minissérie de 1983 se desenvolve em 11 episódios, com aproximadamente 5 horas e meia no total e apresenta Zelah Clarke e Timothy Dalton nos papéis principais. A versão de 2006 tem Ruth Wilson e Toby Stephens e é contada em 4 episódios e um total de 3 horas e 50 minutos. Das três, esta é a que toma mais liberdades na narrativa.
Quando se adapta um livro para TV (ou cinema), decisões são tomadas com relação à linguagem. Por ser uma obra de época, existe também a opção por modernizar – ou não – o texto. As minisséries de 1973 e 1983 optaram pela narrativa em off, reforçando a perspectiva em primeira pessoa e dando um caráter mais literário. Já em 2006, optou-se por uma abordagem mais cinematográfica. É bom lembrar que estas decisões são afetadas também por outros fatores, como tecnologia. Nos idos de 1970 e 1980, a TV ainda não possuía o recurso da imagem digital e o custo de cenas externas provavelmente era menos acessível do que hoje em dia.
Assim, os dois primeiros trabalhos estão mais próximos do teatro, com mais cenas em estúdio e, conseqüentemente, com um texto mais denso. Existe neles uma preocupação em resgatar ao máximo o texto original e os diálogos são longos, floreados e descritivos, o que é mais evidente na versão de 1973, mas ainda perceptível na de 1983. Contudo, depois que o telespectador se habitua, eles não interferem em nada com a apreciação da história.
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Ruth Wilson e Toby Stephens |
Em 2006, houve até uma pequena controvérsia entre fãs pela decisão de modernizar o texto. Mas, ao oferecer um diálogo mais naturalista, com silêncios mais extensos entre uma fala e outra, a atenção do telespectador se volta mais para a imagem e a linguagem corporal e a narrativa fica mais fluente, certamente mais ao gosto do público atual. Também fica mais fácil se identificar com os personagens.
Quanto ao foco da narrativa, em 1973 e 1983 são desenvolvidas quase todas as etapas do livro, sendo que a versão de 1983 inclui praticamente todos os capítulos, na ordem cronológica correta, com exceção da cena da morte de Helen Burns – que é geralmente incluída até mesmo nos filmes de duas horas. O momento em que Jane abraça a menina tuberculosa mostra que ela valoriza mais o afeto e a amizade do que sua segurança pessoal.
A minissérie de 2006 optou por contar uma história de amor. Assim, a infância e a vida em Lowood são mostradas em rápidos flashes. A parte na Moor House com St. John Rivers e suas irmãs é compactada em favor da ampliação das cenas românticas entre Jane e Rochester. É uma opção válida, mas que elimina todo comentário social e autobiográfico, tão valorizados no romance original.
Também utiliza imagens de proximidade física entre Rochester e Jane que não se encaixam com a Jane do livro, principalmente depois de revelado o segredo de seu casamento anterior. Ela não permitiria uma intimidade física desta natureza, não por medo de ser julgada, mas para não perder o respeito por si mesma. A seus olhos, aceitar um envolvimento com ele sem estar casada implicaria numa situação social de desigualdade, algo inaceitável para ela.
Esta versão introduziu a personagem da cigana (que no livro é o próprio Rochester disfarçado). Acho que isto altera a cena de modo significativo. No original, ela oferece um momento de intimidade e cumplicidade entre Rochester e Jane, já que a “cigana” conversa com todas as mulheres da casa, mas ele se revela somente para ela. Também contribui para mostrar um outro lado da personalidade dele, uma lado mais leve e jovial, que se diverte com uma brincadeira inofensiva.
Mas, ao colocar uma pessoa de fora, revelando detalhes sobre a vida pessoal de Jane para convencê-la da “autenticidade” da cigana, o que se tem é uma pequena traição. Ao manipular e expor as emoções de Jane, Rochester cria um distanciamento, momentâneo talvez, mas invasivo e ofensivo. Isto fica mais evidente pela interpretação de Ruth Wilson, que mostra uma Jane Eyre com a sensibilidade à tona, e o que no livro representa uma familiaridade maior entre os dois, passa a ser uma ferida que precisa ser perdoada.
Isto nos leva aos atores. Quando se escolhe um elenco para um livro clássico, a aparência física conta tanto quanto a habilidade em interpretar o personagem. Ambos são descritos como não sendo atraentes e este não é apenas um detalhe, mas um elemento que direciona o rumo da história. Neste ponto, os atores correspondem às descrições do original, ou seja, possuem rostos comuns, que não se destacam pela beleza, mas que também não deixam de ter uma fisionomia agradável, no caso de Jane, ou um charme atraente, no caso de Rochester.
Essa ênfase faz parte da crítica de Charlotte Brontë a uma sociedade superficial, que valoriza aparência e status e despreza os que não possuem um ou outro, ou pior, os dois. Mas, o que os personagens principais não têm em beleza, têm em paixão pela vida e pela autenticidade. Ambos desenvolveram uma atitude disciplinada e contida para lidar com as dificuldades a que foram submetidos e a paixão que surge entre eles é menos física do que mental.
Rochester rejuvenesce ao conversar com uma mulher que não se envolve em joguinhos sociais, não bajula e não tem medo de expressar uma opinião negativa, discordando de alguém em posição “superior” a ela. Jane vê em Rochester uma pessoa a trata como uma igual em suas conversas, e que não deixa de lhe pedir – e respeitar – sua opinião, mesmo que, sendo seu patrão, esteja em condições de exigir seu silêncio ou obediência cega.
Sorcha Cusack traz uma Jane equilibrada, ressaltando seu auto-controle e seu senso de humor bastante intelectual. Nos momentos em que a personagem se deixa levar pela emoção, mostra-se mais magoada do que raivosa. Michael Jayston apresenta um Rochester praticamente impecável. A química entre eles é muito boa, ambos buscando uma atuação de contraste entre o antes e o depois. Ele, taciturno e autoritário no início, romântico, jovial e até divertido quando apaixonado. Ela, reservada e insegura passando à auto-confiança e independência emocional.
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Jane Eyre 1983 |
Zelah Clarke passa muito tempo exibindo a docilidade externa de Jane, de aspecto quase infantil, deixando o lado rebelde e apaixonado um tanto invisíveis. Timothy Dalton mostra um Rochester interessante, mais mau-humorado do que sombrio ou autoritário, mas tem um contraste enorme nos momentos descontraídos, quase lembrando um adolescente. Às vezes, parece que tenta compensar um pouco pela atuação monocromática de Clarke, exagerando nos arroubos passionais.
Já Ruth Wilson vive uma Jane de emoções intensas e, devido a uma abordagem mais sensual da minissérie, acaba perdendo um pouco de sua frieza auto-contida. O senso de humor também é menos acentuado em favor de uma sensibilidade quase excessiva. A parceria com Toby Stephens também é muito boa. Ele apresenta um Rochester mais consistente, menos contrastante e mais próximo do herói galante. Sua rudeza também está mais associada a um trauma do passado do que à imagem do rico proprietário seguro de si.
Vale mencionar também a Sra. Reed, que tem versões diferentes em cada minissérie. A que parece mais próxima do original é a de 1983, interpretada por Judy Cornwell. A tendência é mostrá-la como uma megera ou madrasta má, mas, mesmo no livro, é possível ver que ela é uma mulher aturdida com as atitudes agressivas da criança que ela concordou em criar, e parcial em relação a seus filhos, não entendendo porque Jane não se sente agradecida por sua generosidade.
O St. John Rivers de 2006, vivido por Andrew Buchan, parece mais suave e emotivo do que os dois anteriores. Ainda que isso o torne mais simpático, acho que a interpretação das versões de 1973 (Geoffrey Whitehead) e 1983 (Andrew Bicknell) estão mais próximas do original, sendo a de 1983 um pouco mais completa.
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Jane Eyre 2006 |
A saga da governanta apaixonada por seu patrão exerce grande influência no imaginário coletivo, conscientemente ou não. Podemos ver ecos dessa história em outras obras. No cinema, por exemplo, quem assistiu The Sound of Music/A Noviça Rebelde, poderá reconhecer Rochester e Jane nas figuras do Capitão Von Trapp (Christopher Plummer) e Maria (Julie Andrews). Ainda que baseada numa história real, o filme mostra Von Trapp/Rochester induzindo Maria/Jane a acreditar que se casará com a Baronesa/Blanche Ingram com o objetivo de despertar seu interesse por ele.
Na primeira temporada de Outlander, quando Frank (Tobias Menzies) vai até Craigh na Dun e chama por Claire (Caitriona Balfe) e é ouvido por ela, temos uma recriação da cena em que Rochester chama por Jane e ouve sua resposta. O leitor poderá encontrar seus próprios exemplos, com certeza, em filmes ou séries.
A cada nova adaptação deste romance, pode haver mudança na narrativa, que tende a imitar ou se distanciar do original, que busca recriar o espírito da época ou que reconta a mesma história com toques de atualidade. A verdade é que Jane é uma personagem bastante à frente de seu tempo e sua história, mesmo presa a elementos sociais que não mais existem, apresenta uma modernidade ainda relevante para os dias de hoje.
Esta é uma mulher de pensamento independente que, apesar de ter consciência das diferenças de classe, do tratamento diferente dispensado a ricos e pobres, insiste em acreditar que, no plano da alma, todos são iguais. Também quanto à questão religiosa, ela faz distinção entre o que acha ser a vontade de Deus e o que é apenas um julgamento de pessoas fanáticas em posições de autoridade, rejeitando se submeter às suas imposições.
O livro não levanta bandeiras, não oferece respostas prontas, não defende ou critica nada abertamente mas, por ser narrado sob o ponto de vista da personagem, o leitor não pode deixar de ver o mundo através de seus olhos.
Assim, o legado maior talvez seja mesmo o de estabelecer uma personagem feminina com paixões e idéias próprias, que escolhe seu destino com base no que acredita ser certo e não no que se espera que ela faça, que protege sua auto-estima e se mantém leal à sua verdade. Esta história merece continuar a ser contada.
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