I Love Lucy Definiu a Estrutura das Sitcoms Americanas

 


Por Fernanda Furquim



Quem é fã de séries de TV ou tem interesse pela história do formato com certeza já ouviu falar da série “I Love Lucy”, sitcom produzida nos anos 50 que estabeleceu os critérios de produção desse gênero os quais são utilizados até os dias de hoje. Foi esta produção, por exemplo, que trouxe a presença do público para dentro de um estúdio. Até então, as produções de comédias eram divididas (como até hoje são) entre aquelas filmadas em estúdio seguindo a linha cinema, e aquelas filmadas com a presença de um público, seguindo a linha teatro. A diferença antes de “I Love Lucy”, é que as produções filmadas com público eram feitas, de fato, em um teatro. Como costumavam ser feitos com os programas de rádio com auditório.

O teatro limitava a ação dos personagens e os movimentos de câmera, não apenas pelo espaço pequeno do palco, mas, também, em função da iluminação, que permitia a visualização de sombras do equipamento técnico, ou mantinha o rosto de atores parcialmente no escuro. A partir do momento que as séries eram filmadas em estúdio, esse problema era eliminado.

Mas, contudo, não poderia ter um público presente, pois este não suportaria as horas gastas nos ajustes de luz entre cenas, além é claro, da falta de espaço adequado no local, e o barulho produzido pela audiência que seria captado durante a gravação (apenas as risadas interessavam à produção, o resto atrapalharia a compreensão dos diálogos pelo telespectador em casa). 


Tentando buscar soluções para o problema, a produção da série contratou Karl Freund, cinegrafista do expressionismo alemão, que trabalhara com Fritz Lang no filme “Metrópolis”, entre outros. Freund criou um mapa de luz para permitir que o estúdio fosse iluminado por igual, eliminando assim, a necessidade de se parar entre uma cena e outra; permitindo que todos os atores ficassem na luz e evitando sombras dos equipamentos.

Freund permaneceu junto à produção da série durante todos os 6 anos em que ela foi filmada. Os episódios da sétima à nona temporada já não são mais “I Love Lucy”, embora os personagens de Lucy e Ricky sejam os protagonistas. Isto porque a produção mudou de rumo e de título, “The Lucy and Desi Comedy Hour”, e mostra o casal viajando pelos EUA.

Foi graças à criação desse mapa de luz que o desejo de Lucille Ball e seu marido Desi Arnaz foi realizado: o de filmar a série perante um público, dentro de um estúdio capaz de oferecer espaço e equipamentos melhores. 


Mas ainda restava um problema para ser solucionado: a filmagem em película em um estúdio com público presente. Desi insistia em utilizar três a quatro câmeras de 35 mm. Até então, as transmissões ao vivo utilizavam a câmera eletrônica, que permitia ao diretor utilizar um monitor para acompanhar ensaios e transmissão do programa. Com a câmera 35mm, somente seria possível saber como a imagem ficou depois do filme ser revelado.

A princípio, Jess Oppenheimer, um dos criadores da série, teve a ideia de ensaiar o episódio semanalmente diante de um público, gravando suas reações, e depois filmar o episódio em um estúdio de cinema, com uma câmera. Mas concluíram que seria muito trabalhoso. Assim sendo, decidiram que cada episódio seria filmado com o recurso de três câmeras, sendo que a gravação seria feita na sequência, como em um teatro. 

"I Love Lucy" entrou para a história da televisão como tendo inovado o sistema de filmagem aumentando de uma para três câmeras. Mas, na verdade, outras já utilizavam este recurso para transmissão ao vivo ou filmagem em 16mm. A diferença entre esta série e as demais era a filmagem em 35mm, em sequência, sem cortes durante as cenas (a não ser quando extremamente necessário) e a presença do público em um estúdio de cinema, com um animador para mantê-lo alerta (possibilitando a captação das risadas). 


A produção ainda mantinha como apoio uma quarta câmera, para ser utilizada em apoio às demais. Isto porque as câmeras Mitchell, utilizadas pela produção, não conseguiam gravar mais de dez minutos de filme. Desta forma, uma pessoa ficava controlando o tempo e, quando uma câmera precisava parar para trocar de filme, a quarta entreva em ação para suprir a falta daquela que tinha parado para ser recarregada. 

Os processos técnicos empregados na produção da série permitiram que ela sobrevivesse, em boa qualidade de imagem e som, para poder ser vendida a reprises e home vídeo.

Outra inovação da série é sua escala de trabalho que é utilizada até hoje. Por ser filmada na sequencia, sem cortes para ajustes, era necessário adotar uma escala de dias e horários. Assim sendo, nas terças era o dia de leitura do texto com a presença de produtos, atores e técnicos; nas quartas ocorria o ensaio com cenários, iluminação e movimento de câmeras; nas quintas faziam um novo ensaio com o figurino, iluminação e movimento de câmeras; nas sextas gravavam o episódio com a presença do público. Nesse meio tempo, os roteiros dos novos episódios eram elaborados. 


"I Love Lucy" acabou com as sitcoms ao vivo. Sendo filmada em película, elas eram transportadas avião para Nova Iorque onde eram exibidas. A adoção gradual deste recurso possibilitou às emissoras colocar em prática a censura. Até então, os programas humorísticos ao vivo causavam certos transtornos pois muitos comediantes gostavam de improvisar e assuntos como política, religião e raça haviam se tornado um problema para a televisão.

A série também gerou a criação de um estúdio, o Desilu (que é a junção dos nomes de Desi e Lucille). Isto porque a rede CBS receava que a sitcom não conseguisse atrair o interesse do público em função da presença de um cubano casado com uma americana. Assim sendo, esse cubano, casado na vida real com essa americana, criou o estúdio para que, através dele, pudessem assumir a responsabilidade de co-produção da série, arcando com lucros e dívidas que ela pudesse gerar.

A importância do estúdio Desilu vai além das contribuições técnicas. Vale a pena lembrar que o estúdio foi responsável por outros clássicos da televisão americana, como “Os Intocáveis”, “Missão: Impossível” e “Jornada nas Estrelas”.  Suas dependências também foram alugadas por outros estúdios da época para a produção de suas próprias séries.


Os Personagens

Artisticamente a série ainda contribuiu com a construção de personagens que seriam reproduzidos, adaptados ou serviriam de base para as séries de TV no futuro, em especial as comédias.

Antes de Lucy as mulheres das comédias dividiam-se entre a esposa obediente e carinhosa, ou a esposa desastrada e de “raciocínio limitado”. Pelo menos é essa a informação que se tem junto a historiadores, já que a grande maioria das produções que surgiram entre 1945 e 1951 era ao vivo e poucas foram filmadas em 16mm como registro.

Lucy é uma esposa americana de um músico cubano, Ricky, que tem como melhor amiga a senhoria do prédio em que mora, Ehtel, a qual, por sua vez, é casada com um homem muito mais velho que ela, Fred. Ambos são ex-artistas do teatro de revista e hoje vivem suas aposentadorias cuidando de um prédio em Nova York. As melhores amigas são o centro das atenções da série. Ricky e Fred são os maridos tradicionais, cada um à seu modo. Ele é o típico latino da época, que acredita que lugar da esposa é em casa, fazendo comida e recebendo o marido com um sorriso no rosto. Fred pensa da mesma forma, mas não consegue que Ethel concorde com ele, embora ela faça o papel de dona-de-casa.


Ambiciosa e insatisfeita, Lucy representava as milhares de jovens mulheres que casaram cedo, sem nenhuma noção da vida a dois, e tinham no marido um guia de comportamento. Muitas atitudes de Lucy revelam uma criança que não aceita um não como resposta aos seus desejos, mas também uma mulher que não deseja passar a vida exclusivamente como esposa. Já Ethel é a mulher conformada, que acomodou-se à sua época e vê em Lucy a oportunidade de transgredir padrões. Essas duas personagens criaram base para as personagens femininas que estavam surgindo na televisão.

Com essa estrutura a série explorou ao longo de seus anos o papel da mulher na sociedade da época, regado a muito humor, especialmente o da comédia física. Lucille, atriz de segunda categoria do cinema, e estrela de rádio, sempre desejou ser comediante. Perseguiu Buster Keaton durante meses, até que o convenceu a lhe dar aulas. Assim, quando surgiu a oportunidade de transferir para a TV sua série radiofônica, “My Favorite Husband”, Lucy fez tudo para substituir o ator que interpretava seu marido no rádio, por seu marido na vida real. Esta era uma oportunidade dos dois trabalharem juntos e, assim, salvar seu casamento, que sofria com a separação já que Desi vivia viajando com sua banda, apresentando-se em casas noturnas em diferentes cidades.

Para convencer a CBS a contratar seu marido, ela e Desi montaram um show com esquetes cômicas, apresentando-se em casas noturnas e conquistando o apoio da crítica. No episódio piloto não exibido na TV na época, mas disponibilizado em DVD, podemos ver uma das esquetes apresentadas no show. É quando Lucy participa do show do marido. Aliás este era o grande objetivo da personagem: se colocar em pé de igualdade a Ricky, um artista relativamente famoso.

O Box da 1ª temporada, lançada no Brasil pela Paramount, traz 35 episódios entre eles os clássicos do balé e do comercial de televisão, o qual é praticamente o símbolo da série. Tanto os personagens quanto os episódios ainda são utilizados por roteiristas como base de criação (ou cópia) até os dias de hoje. Se você acha que seus personagens ou situações de sua comédia favorita são originais: assista à “I Love Lucy”, um patrimônio histórico dos seriados de TV americanos.


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Partes deste texto foram originalmente publicados em 2009, no blog Nova Temporada da VEJA.com, onde fui colunista entre 2010 e 2016


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