As Séries Britânicas de Ficção Científica da Década de 1970


Por Fernanda Furquim

A década de 1970 é considerada a ‘era de ouro’ da ficção científica da televisão britânica. Foi neste período que surgiram diversas produções que tinham o objetivo de retratar os problemas sociais e políticos da época. Com isso, elas não se limitaram à abordagem ‘super-herói salva o mundo’, mas se permitiram explorar um terreno mais denso e complexo, o que levou a crítica e o público a apoiar e incentivar este gênero, transformando várias produções em cult.
Tudo começou em 1955, quando surgiu o ITV, o primeiro canal comercial do Reino Unido. Dizem que, em seu primeiro ano, o ITV conseguiu ‘roubar’ 30% da audiência da BBC, que até então reinava sozinha. A BBC era o único canal operando no Reino Unido entre 1932 (quando iniciaram as primeiras transmissões experimentais) e 1955, sendo que as transmissões foram suspensas entre 1939 e 1946, período da 2ª Guerra Mundial.
O canal ITV chegou apostando em uma programação mais popular, trazendo com ele (entre outros programas) séries de TV que retratavam diversos tipos de heróis vivendo diferentes aventuras, em ambientes policiais ou de espionagens, bem como de época. Além das produções originais, o ITV também seduzia o público com as séries importadas dos EUA. Tentando vencer a concorrência, a BBC começou a oferecer um número maior de séries que passaram a fazer parte de sua programação voltada para documentários, teleteatros e diversos programas culturais.
A ficção científica foi um dos gêneros explorados pelos dois canais para atrair o interesse da audiência. A BBC já tinha oferecido alguns teleteatros e minisséries que traziam histórias dramáticas com elementos de fantasia e terror. Entre elas, The Quatermass Experiment (1953), minissérie em seis episódios. Na história, três astronautas são infectados por um organismo alienígena que os transforma lentamente em criaturas vegetais.
Então, em 1963, a BBC contratou Sydney Newman, produtor canadense e ex-diretor da ABC – Associated British Corporation (canal inaugurado em 1956), para assumir o cargo de diretor do departamento de drama. Ele substituiu Michael Barry, que estava no cargo desde 1952. Barry pediu demissão por não concordar com os rumos artísticos que a BBC estava seguindo. A contratação de Newman tinha como principal objetivo resgatar o público que migrou para o ITV. Assim, a missão do novo diretor era a de oferecer programas de conteúdo (mantendo o perfil da BBC) com apelo popular (perfil do ITV).
Newman já tinha produzido para a ABC a série Out of This World, programa de ficção científica que narrava uma história diferente por episódio. Bem recebida pela crítica da época, a série conseguiu atrair não só o interesse das crianças, mas também dos adultos. Buscando repetir a dose, Newman desenvolveu a série Doctor Who, que estrearia em novembro de 1963, ocupando um espaço na grade de programação das tardes de sábado, o qual representava o fim do horário infantil e o início dos programas para adultos. Com o objetivo de criar uma série educacional, fugindo da abordagem escapista, Newman e os roteiristas Cecil Edwin Webber e Donald Wilson visualizaram um programa que pudesse educar os jovens com aulas de história, ciências, tecnologias, viagens espaciais e no tempo, enquanto se divertiam vivendo uma aventura.
Em sua concepção original, Doctor Who trazia episódios de meia-hora com histórias divididas entre dois e seis episódios. A primeira história levou o Doutor e seus companheiros de viagem ao mundo pré-histórico. A série não agradou o público e o canal chegou a temer seu cancelamento. Quatro semanas depois, entrou no ar a segunda história introduzindo os Daleks, seres cyborgs que desejam a extinção de outras raças. A audiência subiu, chegando a 9 milhões de telespectadores, garantindo assim a continuação da série. Ironicamente, os Daleks salvaram o Doutor.

Ainda na década de 1960 foram produzidas outras séries de ficção e fantasia que marcaram sua época, como as supermarionations de Gerry Anderson, bem como Adam Adamant Lives! (série que teria inspirado a franquia Austin Powers), Enigma (coprodução americana), Os CampeõesRandall and Hopkirk (Deceased), e a que considero a mais importante de todas, O Prisioneiro.
Doctor Who atingiu o auge de sua popularidade na década de 1970 (com a chegada da TV em cores). Em 1975, com Tom Baker no papel título, a série conseguiu registrar a média de 14 milhões de telespectadores, um número muito alto para os padrões britânicos. Sua crescente popularidade levou os canais a investirem em outras séries de ficção científica para fazer companhia ao Doutor ou disputar seu público.
Neste período, o Reino Unido passava pela crise econômica internacional que gerava greves, cortes de investimentos e uma crise energética. Entre 1973 e 1974, o governo estabeleceu o desligamento dos equipamentos de transmissão da BBC e do ITV que, após as 22h30, não poderiam mais operar, até a manhã seguinte.
Os problemas sociais e políticos da época foram abordados, de uma forma ou de outra, pelas séries de ficção científica que surgiram neste período. As diferenças de classe sociais (tema comumente explorado pela TV britânica), a ideia do totalitarismo, as preocupações com o meio ambiente, entre outras questões, se tornaram temas destas produções. Comentarei apenas algumas das que se destacaram nesta época.
Em 1970 a BBC1 estreou Doomwatch, série criada pelo doutor Kit Pedler, cientista que serviu de conselheiro para as diversas situações apresentadas na trama, e por Gerry Davis, roteirista que trabalhou em Doctor Who, tendo criado o personagem Jamie McCrimmon. Pedler e Davis também foram os criadores dos Cybermen, raça cyborg inimiga do Doutor. Doomwatch teve um total de três temporadas e trinta e oito episódios. Embora classificada como ficção científica, a série retratava fatos científicos.
Na história, tentando apaziguar os protestos nas ruas e garantir sua reeleição, o governo relutantemente forma o Doomwatch – Department for the Observation and Measurement of Scientific Work, órgão que reúne diversos cientistas com a missão de observar e avaliar as pesquisas científicas que são realizadas por grupos públicos e privados. Sua missão é evitar que essas pesquisas se tornem um perigo para a vida humana ou para o meio ambiente.
O grupo era liderado pelo Dr. Spencer Quist (John Paul), que sentia remorsos por ter ajudado no desenvolvimento da bomba H, tendo perdido sua esposa para os efeitos da radiação. Apesar do apoio do governo, o departamento enfrentava as constantes tentativas de Sir George Holroyd (John Barron) de fechá-lo.
Ao longo de seus episódios, a série mostrou histórias que abordavam temas como o desperdício de produtos químicos e o perigo que eles representam quando despejados no meio ambiente; acidentes envolvendo dispositivos nucleares; o perigo que a poluição representa para a vida na Terra; o perigo que representa o abuso comercial no uso de substâncias tóxicas; além de pesquisas com embriões, mensagens subliminares, substâncias alucinógenas, com animais e mutações genéticas, entre outros.
A primeira temporada termina com a morte de um dos membros da equipe, que leva a um inquérito, o qual pode desacreditar o trabalho do Dr. Quist e fechar o departamento.
A série estreou registrando a média de 13.9 milhões de telespectadores, mantendo mais ou menos essa média ao longo de sua produção. Mas os temas abordados por Doomwatch eram uma constante dor de cabeça para a censura interna da BBC. Isto e o fato da série utilizar imagens reais exibidas em noticiários colocavam em risco sua existência.
A produção foi cancelada depois que seu último episódio foi censurado. Com o título de Sex and Violence, o episódio trazia imagens reais da execução pública de um ladrão ocorrida na Nigéria em 1970, bem como uma versão ficcional da ativista Mary Whitehouse e do político Lord Longford. Seu status de cult levou à produção de uma versão cinematográfica em 1972, com roteiro de Clive Exton, e a um telefilme em 1999, com o título de Doomwatch Winter Angel, com roteiro de John Howlett e Ian McDonald.
Em 1975, Terry Nation (criador dos Daleks) estreou na BBC1 a série Survivors, drama situado em um mundo pós-apocalíptico.
Na história, 99% da população na Terra é destruída por uma praga, provocada por um vírus cultivado em laboratório. Os que sobreviveram, por serem imunes ou por terem conseguido se recuperar, tentam se unir para reconstruir a sociedade. Sem a infraestrutura oferecida por um governo e uma sociedade, eles vivem sem energia elétrica em comunidades nos arredores das grandes cidades, onde milhares de corpos estão em decomposição. Aos poucos, essas comunidades começam a entrar em contato entre elas e a se unirem para restabelecer a civilização como a conhecemos.
Entre os personagens estão Abby (Carolyn Seymour), uma mulher que não aceita a morte do filho e passa a procurá-lo na esperança de encontrá-lo vivo; Greg (Ian McCulloch), um engenheiro; Jenny (Lucy Fleming), uma secretária; Ruth (Annie Irving), uma estudante de medicina; e Charles (Dennis Lil), um arquiteto que acha que a solução da humanidade é engravidar as mulheres que sobreviveram.
Survivors foi produzida entre 1975 e 1977, com um total de 38 episódios. Pouco depois, Nation lançou uma novelização que dava continuidade à trama desenvolvida na TV. Em 2008, a BBC tentou resgatar a série produzindo um remake, que trouxe o mesmo título. Sem conseguir provocar o mesmo impacto que a produção original teve na década de 1970, a série foi cancelada com duas temporadas e doze episódios.
Elenco de Blake's 7

Outra produção importante nesta década foi Blake’s 7, que recentemente foi alvo de um remake americano (não produzido). Exibida entre 1978 e 1981, com um total de quatro temporadas e 52 episódios, a série, também criada por Nation, narra uma história situada no futuro. A Terra está unida a outros planetas e governada por um regime totalitário, o Terran Federation, que manipula e controla a sociedade através da política, religião, tecnologia e genética.
Roj Blake (Gareth Thomas) é um dissidente político acusado de molestar crianças. Julgado e condenado, ele é levado a um planeta prisão. No caminho, ele se rebela e consegue tomar a nave Liberator. Junto com Blake, a Liberator transporta outros prisioneiros que o ajudam a tomar a nave. São prostitutas, assassinos e ladrões que acabam se unindo a Blake em sua luta ideológica. No entanto, são pessoas em quem ele não pode confiar.
Entre elas, Avon (Paul Darrow), um mercenário psicopata especialista em computadores, que foi preso por fraude; Vila (Michael Keating), um ladrão; Jenna (Sally Knyvette), uma contrabandista e piloto; e Gan (David Jackson), um homem que foi preso por matar um oficial que violentou sua namorada. Agora ele tem um dispositivo implantado no cérebro que previne que ele mate novamente. Mais tarde, Cally (Jan Chappell), uma alienígena telepática, se une ao grupo, que também conta com a ajuda de Zen (voz de Peter Tuddenham), o computador da nave Liberator.
O público acompanha a luta do grupo para derrubar o governo, muito embora a maioria dos personagens não sustentem interesses ideológicos e Blake seja acusado várias vezes de ser fanático. Com baixo orçamento, a série foi produzida por quatro temporadas e 52 episódios. Ao longo da história, um dos personagens centrais morre e Blake desaparece em ação. Isto porque Gareth decidiu deixar o elenco ao final da segunda temporada. Assim, durante todo o terceiro ano, Blake não é visto na história, que é sustentada pelos personagens secundários. Quando a série foi renovada para a quarta temporada, Gareth voltou a interpretar Blake, com a condição de que seu personagem fosse morto no final daquele ano. Embora ainda conquistasse uma boa audiência, a série não foi renovada para sua quinta temporada.
Blake’s 7 foi uma das primeiras a surgir na esteira do sucesso de Guerra nas Estrelas. Conhecido como space opera (novela espacial), o formato também marcou presença na TV americana com Battlestar Galactica, Jornada nas Estrelas: a Nova Geração, Babylon 5 e a australiana Farscape, entre outras.
Ao longo da década de 1970, a TV britânica também ofereceu U.F.O., Espaço: 1999Seres do Amanhã (que ganhou dois remakes americanos), The Adventures of Don Quick (uma sátira sobre um astronauta viajando pelo espaço e conhecendo novos mundos), Moobase 3 (sobre uma comunidade científica européia vivendo em uma colônia lunar no ano de 2003), The Omega Factor (sobre um jornalista com poderes psíquicos), Sapphire & Steel (sobre dois alienígenas que tomam a forma humana e são enviados à Terra para corrigir problemas causados por um ruptura na linha do tempo), The Guardians (situada em um futuro próximo onde a Inglaterra é dominada por um governo militar totalitário), Timelisp (sobre dois adolescentes que viajam no tempo) e Star Maidens (sobre um planeta dominado por mulheres que utilizam os homens como escravos e objetos sexuais), entre outros. A década também apresentou o retorno de Out of the Unknown (adaptação de contos de ficção científica e fantasia), com uma última temporada da série produzida entre 1965 e 1969.
Com a década de 1980, começaram a surgir novas tecnologias que passaram a ser utilizadas pela indústria do entretenimento. Os EUA foi o país que melhor aproveitou essas mudanças tecnológicas, produzindo séries de ficção e fantasia com super-heróis ou viagens espaciais. O orçamento dessas novas tecnologias era proibitivo para os padrões dos canais britânicos, que não conseguiram competir com as produções americanas importadas. Assim, a TV britânica, alegando um desgaste do gênero, começou a abandonar este tipo de produção. Doctor Who ainda resistiu por mais uma década, mas não conseguiu entrar nos anos de 1990, voltando apenas em 2005 (o filme de 1996 é uma coprodução americana).
Nos anos de 1980 a maioria das séries de ficção britânicas eram comédias ou produções infantis. Entre as que se destacam estão Red Dwarfsérie com oito temporadas que virou cult, ganhando dois retornos, um em 2009 e outro em 2012 (este ainda em produção); e The Hitch Hikers Guide to the Galaxy, versão para a TV da obra de Douglas Adams, com apenas seis episódios produzidos. Outra produção deste período é Hammer House of Mystery and Suspense (lançada em 2017 em DVD no Brasil pela Vinyx), que se apoiava mais no tema terror e fantasia que ficção científica. Também foram exibidas algumas minisséries, como a nova versão de Day of the Triffids, que ganhou mais uma adaptação  em 2009; e o telefilme Max Headroom, que gerou um talk show americano, apresentado por Headroom.
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Texto originalmente publicado em setembro de 2013, no blog Nova Temporada da VEJA.com, onde fui colunista entre 2010 e 2016. 

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