A Trajetória de The Leftovers


Por Fernanda Furquim

Quando The Leftovers estreou em 2014 pela HBO, ela foi bem recebida por apenas uma parcela da crítica, e não foi capaz de conquistar um grande público, que só conseguiu entender a proposta da série quando ela entrou na segunda temporada. Isto porque, em seu retorno, The Leftovers ofereceu uma mudança de clima e de abordagem. Mas, o que parecia ser uma estratégia da produção para elevar a receptividade do programa, se revelou uma bem estruturada forma de apresentar ao público o processo emocional de recuperação de uma sociedade (representada por um grupo de indivíduos) após uma tragédia.
Dentro deste contexto, a trajetória da série também poderia ser comparada, de forma muito simplificada, à da humanidade que, saindo de um ambiente de caos, passa pelo mergulho espiritual/religioso, abraçando em seguida o lado racional/científico, ambos acompanhados por conflitos sociais e pessoais (que incluem ataques terroristas de grupos e/ou indivíduos). A ideia é a de que ela seja capaz de chegar a um ponto no qual, com estes dois lados em equilíbrio, será possível encontrar uma maneira de lidar melhor com nossos relacionamentos pessoais e sociais.
A primeira temporada é o retrato do caos, do desespero, da depressão, da apatia, da revolta e da loucura em um ambiente opressivo, que surgiram como reação a uma tragédia (neste caso) inexplicável. Na segunda temos a luta de cada personagem para conseguir reagir à situação em que se encontra, com o objetivo de reconstruir suas vidas, recuperando o controle de sua existência. É neste momento em que a espiritualidade toma conta de boa parte da ação, desafiando a compreensão de alguns personagens e conquistando a fé quase cega de outros. Na terceira, vemos vários personagens já restabelecidos socialmente, mas ainda precisando enfrentar seus próprios demônios. A ciência força sua presença na trama, desafiando novamente a compreensão de alguns. Em paralelo, vários personagens atingem um nível de entendimento sobre si mesmos e o ambiente em que vivem que, enfim, os leva ao estágio da aceitação de quem são.
(E-D) Meg, Patti e Laurie (Fotos: HBO/Divulgação)

Iniciando três anos após o desaparecimento inexplicável de 2% da população mundial (cerca de 140 milhões de pessoas), a série acompanhou a vida de um grupo de moradores de Mapleton, uma pequena cidade do estado de Nova Iorque, que ainda sofre as consequências da perda. Inspirada nos sentimentos que surgiram entre os americanos após viverem os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001, a série  é uma adaptação de Damon Lindelof da obra de Tom Perrotta, que atuou como cocriador, produtor e roteirista.
A primeira temporada retrata a história do livro e seus personagens, com algumas diferenças, a exemplo de Kevin (Justin Theroux), que na obra de Perrotta é um prefeito e na série um delegado em crise de identidade; e do pastor Matt Jamison (Christopher Eccleston), que no livro tem uma participação pequena. Na versão para a TV, na qual é o irmão de Nora Durst (Carrie Coon), namorada de Kevin, ele ganha maior importância e uma personalidade mais generosa, chegando a estrelar três episódios (um em cada temporada). Ele, é claro, não foi o único, visto que a série, apesar de oferecer uma história contínua, apresenta a cada episódio situações vividas por um personagem ou um determinado núcleo de personagens.
A forma como a história é contada faz com que o telespectador esteja na mesma posição que os personagens da série, vivenciado a falta de informações e o caos. Ao longo de toda a primeira temporada, estamos tão perdidos quanto as pessoas que acompanhamos. Juntos vamos vivendo dia a dia/episódio a episódio, reagindo aos acontecimentos, reconhecendo atitudes, mudando de opinião sobre esta ou aquela pessoa, entendendo o ambiente, tateando no escuro em busca de uma resposta que não vem. A vida segue, mesmo sem saber o que nos espera ou como chegamos a este ponto. Apenas a partir da segunda temporada, quando já estamos acostumados ao ambiente, narrativa e personagens, é que as situações que eles vivem e as atitudes que tomam começam a fazer algum sentido para o público.
Kevin filho e Kevin pai.

No início da história, somos apresentados à nova sociedade americana que se formou. Passados três anos da reação inicial, sem ter conseguido encontrar uma resposta para o desaparecimento, a sociedade tenta restabelecer sua rotina, celebrando anualmente a partida daqueles que se foram, os quais são retratados pelo governo como heróis. Mas a grandiosidade e o mistério em torno do evento fizeram com que as pessoas sofressem uma ruptura psicológica e emocional. O mundo como eles conheceram acabou. A tecnologia é a mesma, os hábitos do dia a dia também, mas a sociedade sofreu uma transformação cultural. Muitos perderam a fé em Deus ou em algo (em um dos episódios mais simbólicos, vemos Kevin tentar encontrar o menino Jesus, que desapareceu da manjedoura de um presépio); e outros buscaram na religião, seja ela qual for, um sentido para a vida.
O caos e o medo do desconhecido dominam as pessoas, que tentam aparentar normalidade. As autoridades se mostram incapazes e desnorteadas para assumir o controle da situação. Sem condições de oferecer uma explicação, e sem poder para restabelecer a confiança do povo ou de oferecer um programa que unifique a população, o governo cria algumas formas de sobrevivência para manter o controle de uma sociedade que perdeu a crença no presente e no futuro (quem garante que o mesmo evento não voltará a acontecer?). Comitês foram formados por cientistas que tentam encontrar uma resposta para o mistério, garantindo ao público que algo está sendo feito para dar a eles uma satisfação.
Enquanto isso, um valor em dinheiro é oferecido para ‘compensar’ a perda de familiares. Ao mesmo tempo, o governo promove o desaparecimento dos corpos de membros de seitas indesejáveis (episódio cinco) e se mostra incapaz de criar um programa de incentivo à vida. Vemos uma sociedade que se ‘arrasta pelos cantos’, à mercê de cultos religiosos e de grupos de apoio que se formam, cada um mais bizarro que o outro (episódios um, quatro e seis), enquanto a mídia noticia ressurreições (episódio oito).
(E-D) Matt, Michael, John e Laurie

A sociedade divide-se em grupos, aqueles que continuam acordando todos os dias para ir trabalhar e se tornar útil na reconstrução social, moral e cultural, a exemplo de Kevin e Nora; aqueles que se tornam apáticos ou depressivos e pouco se importam (ou tentam não se importar) com o que acontece à sua volta, a exemplo de Jill (Margaret Qualley), filha de Kevin e de sua ex-esposa Laurie (Amy Brenneman); aqueles que se revoltam com o que aconteceu e tentam encontrar uma resposta (ou explicar o que não aconteceu), a exemplo de Matt e de Kevin Sr. (Scott Glenn), pai de Kevin; e aqueles que se revoltam com a forma como a sociedade lida com o que aconteceu, a exemplo dos membros do Remanescentes Culpados, entre eles, Laurie, uma psicóloga; Patti (Ann Dowd), que tinha sido sua paciente; e Meg (Liv Tyler), uma mulher insegura e desorientada.
Este grupo é uma espécie de seita que acredita ser ‘lembrança viva’ do Arrebatamento. Na visão deste grupo, se eles foram deixados para trás, significa que foram considerados culpados. O evento representa o fim da vida como eles a conhecem, o que faz com que percam a fé no passado (pois tudo o que fizeram foi em vão) e no futuro da humanidade. Os membros deste grupo desejam estabelecer uma nova ordem, pela qual sacrificam suas vidas, pregando o desapego à família, às crenças, aos pertences e ao antigo estilo de vida. Param de se comunicar com a voz, talvez por considerá-la um grito de desespero. Passam a fumar compulsivamente, talvez porque para eles não exista futuro.
Eles tentam impor sua vontade, provocando a sociedade para que ela não esqueça o evento que abriu seus olhos para o que a vida de fato representa. Extremista, o grupo busca formas cada vez mais radicais para alcançar seu objetivo. No início eles agem de forma apática; são como fantasmas, todos vestidos de branco perambulando em silêncio pelas ruas; postando-se em frente às casas ou lojas onde estão pessoas que perderam alguém, tentando se tornar a lembrança viva daqueles que se foram. Com o passar do tempo, eles assumem um comportamento mais agressivo (lembrando os membros da Klu Klux Klan, que também se vestiam de branco), causando mortes e destruição.
A família Murphy. (E-D) Erika, John, Michael e Evangeline

Passada a fase do caos, tristeza e desespero, a  sociedade vista na série atinge o momento da reconstrução (que provoca o debate) da espiritualidade, trabalhada na segunda temporada. Aqui, todo o sentimento de desespero, desorientação e tristeza começa a perder força quando o desejo de refazer suas vidas leva, cada um à sua maneira, a entrar em contato com seu íntimo.
A primeira temporada encerra com o nascimento de uma nova vida, que trará para os personagens centrais um alento e uma esperança de um futuro melhor. Eles se mudam para Jarden, Texas, uma espécie de Jardim do Éden, onde a vida continua como se nada tivesse ocorrido, já que neste lugar não foi registrado nenhum desaparecimento. Razão pela qual muitos estão determinados a se mudar para lá, acreditando se tratar de um lugar ‘abençoado’. A vida na cidade se apresenta idílica, mas o lugar está literalmente cercado pelo caos e destruição moral, representados pelo acampamento que se forma ao redor da cidade pelos peregrinos que desejam entrar no Paraíso a qualquer custo.
Mas, como todo Éden, este também tem sua serpente, John Murphy (Kevin Carroll), que questiona a fé das pessoas e controla suas vidas, determinando o que elas podem ou não fazer e como. Seu comportamento obsessivo causa dor, separações, injustiças e insegurança (Érika, Evangeline, Virgil, Isaac, Kevin) que, somado a outros eventos (Meg), culminam na destruição do jardim. Ao mesmo tempo, os personagens lutam para dar um sentido à vida. Alguns adotam, de forma mais racional e ordenada, o misticismo, a exemplo de Virgil (Steven Williams) e Isaac (Darius McCrary); e a religião, a exemplo de Matt e Michael Murphy (Jovan Adepo); e aceitam a existência da vida após a morte (Kevin, Patti, Virgil e posteriormente John) e de milagres (Kevin, Matt e Mary). Já outros, como Laurie e seu filho Tommy (Chris Zylka), adotam o misticismo para tentar ajudar as pessoas a se reerguer e reconstruir suas vidas.
Nora e Matt

Depois de restabelecer o lado espiritual, a série passa a trabalhar na terceira temporada o desafio de reconstruir a fé na ciência. A  sociedade representada em The Leftovers aprofunda o questionamento da fé religiosa quando entra em choque com a ciência, utilizada para explicar a vida (a exemplo de Laurie e seu trabalho), bem como o desaparecimento de milhões de pessoas (as experiências científicas que desafiam Nora).
A ciência é introduzida nesta fase da série de forma sorrateira, considerando que a segunda temporada trabalhou exaustivamente para que todos aceitassem a espiritualidade como uma evidência palpável. Desta forma, a ciência é inicialmente vista, tanto pelos personagens quanto pelo público, com incredulidade, quase uma fantasia da imaginação de pessoas que buscam por uma resposta plausível. Entre as poucas que ainda se agarram à razão científica em detrimento da fé em um mundo espiritual são Laurie, que desiste de lutar ao se ver cercada por pessoas que aceitam sem questionar ideias que fogem à sua compreensão (episódio seis); e Nora, uma mulher cética e prática, que necessita compreender racionalmente o sentido de tudo o que a cerca. Mas mesmo Nora questiona a veracidade do que lhe é apresentado cientificamente. Perseguindo a verdade, ela dá as costas para a fé pregada por seu irmão e vivida por seu marido, e passa a perseguir a ciência como única forma de estabelecer a verdade e lhe restaurar a alegria de viver.
Em paralelo à introdução do debate científico, The Leftovers mostra cada personagem, em seu próprio tempo e maneira, chegando a uma compreensão de si mesmo, de suas atitudes e crenças, o que os leva a aceitar as situações em que se encontram, e a lidar melhor com as decisões que precisam tomar para definir seu presente e seu futuro.
Nora e Kevin

Assim, tendo restabelecido a fé e a razão dos personagens, a série finaliza sua trajetória resgatando o amor, representado de diferentes formas: o amor de pais e filhos (Laurie, Jill, Tommy, Kevin Jr e Kevin Sr.);  entre ser humano e Deus (Matt); entre irmãos (Matt e Nora); e entre homem e mulher (Nora e Kevin).
Em oposição ao início da série, The Leftovers encerra com um ambiente social mais harmônico, no qual pessoas são capazes de aceitar melhor o próximo (freira e casal de noivos), enviando mensagens de paz, esperança e amor. É claro que as pessoas não se tornaram santas ou livres de segundas intenções; nem foram resolvidos todos os problemas, sejam sociais ou pessoais, retratados na série (que não oferece uma resposta definitiva para qualquer das perguntas levantadas ao longo de sua história, como os produtores já tinham avisado). Mas a história encerra com a ideia de que é possível viver em equilíbrio. Para tanto, é importante lembrar o passado e aprender com ele, mas é necessário virar a página (Kevin reencontrando Nora) se quiser construir um novo futuro (Nora e a história que ela conta para Kevin). Como diria a freira (Linda Cropper) para Nora: é melhor assim.

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