Tabula Rasa, um Drama Psicológico Belga com Elementos Sobrenaturais


Por: Marta Machado

Tabula rasa é uma expressão em latim cujo significado literal é tábua raspada, que podemos interpretar simplesmente como uma folha de papel em branco. Os antigos romanos usavam tábuas cobertas por uma fina camada de cera sobre a qual escreviam fazendo incisões. Depois, as inscrições podiam ser raspadas e as tábuas eram usadas novamente. Tal como uma folha em branco onde registramos todo tipo de informação, a memória de Mie, personagem central da série belga Tabula Rasa, possui diversas lacunas que ao longo de nove episódios são preenchidas com fatos que tanto ela como o espectador não têm certeza de serem reais ou confabulações.
Annemie D’Haeze, ou apenas Mie (Veerle Baetens), encontra-se neste estado devido a um acidente de carro, a partir do qual passou a sofrer de amnésia anterógrada. Suas lembranças até o acidente estão intactas, mas sua capacidade de criar novas memórias ficou comprometida, pois o cérebro não consegue codificar e armazenar estas memórias. Assim, sua estória começa em um hospital psiquiátrico para o qual foi levada após um surto, que suprimiu suas lembranças recentes. Infelizmente, tais lembranças guardam a chave do desaparecimento de Thomas De Gueest (Jeroen Perceval). Como ela foi a última pessoa a vê-lo, a polícia decide mantê-la no hospital até que possam localizar a vítima.

Thomas De Gueest
A maior preocupação do inspetor Jacques Wolkers (Gene Bervoets) é evitar que sua investigada passe por situações de estresse e pânico, pois segundo o médico, estes fatores podem agravar seu estado e apagar completamente qualquer lembrança. Portanto, para terem acesso a Mie, seu marido Benoit (Stijn Van Opstal) e sua mãe Rita (Hilde Van Mieghem) são obrigados a assinar um termo de compromisso que os impede de lhe dar qualquer informação referente a De Gueest durante as visitas. A partir desse momento e sem nenhuma pressa, a narrativa passa a montar um complicado e perturbador quebra-cabeça, apresentando as peças em dois períodos de tempo: o presente, que começa com a internação de Mie em 4 de dezembro, e o passado, que começa três meses antes do desaparecimento de Thomas De Gueest e se desenrola até o dia atual. Passado e presente avançam lado a lado, ao longo dos 11 dias de internação.
Rita e Benoit
O pesadelo de Mie começou em 2014, quando a produtora da série Helen Perquyapresentou um roteiro escrito por Malin-Sarah Gozin, juntamente com Christophe Dirickx e Verlee Baetens (a protagonista), durante o evento anual Series Mania, em Paris. Na época, o romance Before I Go to Sleep/Antes de Dormir, de S.J. Watson, havia sido adaptado para o cinema, contando o drama de uma mulher com amnésia anterógrada. Baetens não gostou da adaptação, mas ficou fascinada pela trama vivida por Nicole Kidman e achou que a ideia poderia ser melhor desenvolvida em uma série, especialmente porque o tema não havia sido explorado na TV belga.

Mie e seu diário
A partir das imagens iniciais da trama, o espectador fica sujeito à perspectiva de Mie, quando tem acesso aos acontecimentos do passado na forma de flashbacks. Temos pouca vantagem sobre a personagem à medida que ela recorda fatos anteriores ao desaparecimento de De Gueest. Nestas primeiras imagens inquietantes, vemos o que Mie vê. Ela vaga pelos arredores de sua casa, repetindo números reais, como no relógio digital, e imaginários, como aqueles formados ou mostrados por objetos. De repente, a visão de Mie, e a nossa também, é soterrada por uma fina areia vermelha. A seguir, estamos com ela no hospital e a paciente não tem a menor ideia do que está acontecendo. Mas diante dela, estão os números escritos em um pedaço de papel. Eles fazem parte de uma técnica de associação usada para ajudá-la a relembrar. Mas para garantir que os fatos atuais e anteriores ao surto não se percam, Mie passa a registrar todas as novas informações em um diário. Ela não deixa ninguém vê-lo, mas com frequência discute o que pensa com a Doutora Mommaerts (Natali Broods), sua psiquiatra, e Vronsky (Peter Van den Begin), um paciente piromaníaco com quem faz amizade.
Doutora Mommaerts e Vronsky com Mie
Inicialmente, ela não tem nenhuma lembrança de De Gueest, mas recorda da assustadora casa para onde ela se mudou com Benoit e sua filha Romy (Cécile Enthoven), após ter causado um incêndio na casa onde moravam anteriormente. O aspecto visual dos dois períodos nos coloca em diferentes atmosferas: o passado, representado fortemente pela casa, dá um tom sobrenatural, enquanto o presente segue a linha do suspense psicológico. As cenas no passado, dirigidas por Jonas Govaerts, são sombrias e acompanhadas de uma trilha preocupante. Nelas, Mie é atormentada por figuras bizarras existentes no porão, sons inexplicáveis vindos das paredes, noites inteiras que parecem acabar em um piscar de olhos e inexplicáveis visões com Romy, que a levam a chamar médiuns desobssessores para analisar a casa.
Pelo que vemos no presente, dirigido por Kaat Beels, nada leva a crer que se trata de uma trama de terror, mas todos os indícios estão lá (no passado). Até mesmo um gato de três patas. Mie demonstra sua preocupação ao marido, por exemplo, ao observar um espelho quebrado que pertencera ao avô. “Ele dizia que os espíritos vinham pela rachadura.” O próprio título do piloto, De Gueest, é uma referência ao sobrenatural, já que no idioma holandês “de gueest” significa o fantasma, ao mesmo tempo que se refere simplesmente ao homem desaparecido.
Esta ambiguidade foi proposital e permitiu que os roteiristas ilustrassem o passado de Mie com referências a outras obras. No episódio 4 (O Fio de Ariadne/De Braad Van Ariadne), por exemplo, Mie fica apreensiva com uma inscrição de Romy em seu caderno. A página inteira está coberta pela frase “o fantasma está na casa.” Lembrando que fantasma é de gueest. Podemos supor que a resposta à insistente pergunta de Wolkers “Onde está De Gueest?” estava bem diante de Mie. Para perceber esta dica, no entanto, o espectador não-belga teria que ficar mais atento à inscrição no caderno do que na tradução. Mas é claro, nosso foco é desviado para Romy, sentada em frente à TV, em uma referência clara a Poltergeist (1982).
Outros filmes apontados como fonte de inspiração são O Bebê de Manhattan/Manhattan’s Baby (1982), de Lucio FultiO Iluminado/The Shining (1980), de Stanley KubrickA Troca/The Changeling (1980), de Peter MedakO Labirinto do Fauno/El Laberinto del Fauno (2006), de Guillhermo del Toro, e Inverno de Sangue em Veneza/Don’t Look Now (1973), de Nicolas Roeg.
O grande inspirador, no entanto, foi David Lynch e suas tramas complexas: Estrada Perdida/Lost Highway (1997) e Twin Peaks (1990). O filme Estrada Perdida é uma viagem alucinatória apresentada do ponto de vista de Fred, mostrando a realidade de acordo com sua mente e contendo pistas do que de fato aconteceu. Da mesma forma, os sonhos e a realidade estão interligados em Tabula Rasa. A referência mais sólida com relação à série Twin Peaks é a misteriosa presença de Bob, que na série de Lynch era a entidade demoníaca que assombrava a cidade. Em Tabula Rasa, Mie sonha constantemente com Bob, uma figura assustadora, obscura e sem rosto. Este elemento, aparentemente solto na trama, tem um papel crítico no desfecho da estória. E a noção de que não se pode confiar em ninguém também é uma constante em Tabula Rasa.
Bob
Cada lembrança recuperada e devidamente registrada em seu diário conduz Mie pelos meandros do labirinto que sua vida se tornou. Quanto mais informações ela obtém, mais desconfiada fica, e como percebemos tudo pela sua ótica, também desconfiamos de todos a sua volta. Todos parecem estar escondendo algo, inclusive o inspetor Wolkers, cujo interesse por De Gueest vai além do profissional. O sentimento é reforçado pela primeira de uma série de correspondências anônimas, que diz “As mentiras deles são tão fortes, que os olhos ficam cegos.”
Inspetor Wolkers
No quinto episódio, os flashbacks de um mês antes do desaparecimento de De Gueest, levam Mie à descoberta mais perturbadora da série, quando, atendendo a uma sugestão de sua filha Romy, Mie segue Benoit ao que a menina descreve como o esconderijo do papai. Porém, ao chegar no local, ela fica chocada ao perceber o que de fato está acontecendo. Compreendemos, então, o estranho comportamento das pessoas na presença de Mie.
Quando este segredo vem à tona no passado, os laços familiares ficam comprometidos, pois o pacto de silêncio agora é irrelevante. Assim, cada um pode finalmente externar suas opinões divergentes e conflitantes. O motivo de Rita é contundente: contar a dura verdade a Mie repetidas vezes tornara-se um peso grande demais a suportar, já que devido à amnésia anterógrada, ela sempre esquecia os fatos pouco depois. Assim, seus familiares, mesmo os contrários ao plano, concordaram em deixá-la viver no conforto da mentira.
Mas se esconderam algo tão importante, o que mais poderão estar escondendo agora? A desconfiança corrói as relações familiares, especialmente entre Mie e Benoit. Por isso, ela passa a aceitar a companhia de De Gueest com quem desabafa sobre as angústias provocadas pela amnésia. De Gueest é sempre solidário e amigável, mas ao contrário de Mie, o espectador sabe que existe uma intensão dissimulada em seu interesse por ela.
Ao lembrar-se da reação de Benoit à esta aproximação, Mie fica apreensiva. Nesse momento somos levados a considerar a possibilidade de Benoit estar por trás do desaparecimento. Toda esta inquietação não desestruturou apenas Mie. Benoit precisou de muita abnegação para suportar uma convivência de segredos e mentiras, enquanto Rita, embora constantemente acusada de egoísta, fez apenas o que achou ser melhor para a filha. Ambos, marido e mãe, queriam acima de tudo proteger Mie. Pelo menos, é o que eles afirmam. Cabe a nós e a Mie decidir se vale a pena acreditar ou se precisamos continuar duvidando.
Conforme a série se aproxima do final, suas lembranças, que a princípio retornavam lentamente, assumem um ritmo mais acelerado, pois já se passaram muitos dias desde o desaparecimento. Os pesadelos tornam-se mais fortes, mais frequentes e mais reveladores, até que sob extrema pressão, ela novamente sonha com Bob (título do último episódio). Quem será Bob? Ele poderá de fato ajudar Mie a desvendar o mistério ou será que ele não passa de mais uma confabulação? Quando as últimas peças do quebra-cabeça começam a se encaixar, nos surpreendemos com a percepção de que muitas pistas estiveram bem a nossa frente, veladas de forma hábil.
Ao longo de toda esta trama, temos um fio condutor: uma areia vermelha que representa a natureza fugaz das memórias da protagonista. Quando Mie se esquece de algo, a areia é soprada sobre ela em camadas leves e às vezes em quantidades que a sufocam. Quando se recorda, a areia é soprada para longe, exatamente como ocorre após Mie lembrar-se de forma definitiva de algum fato.
Bastidores mostram a areia
Além da areia, observamos outros temas recorrentes e de grande significado. O labirinto, por exemplo, é uma constante que representa a mente caótica da personagem, e está presente por toda parte: no seu diário, nas paredes de sua casa, no piso e até mesmo na introdução do episódio 4, que começa contando a estória de como Teseu venceu o Minotauro, criatura mitológica que vivia em um labirinto. As raízes presentes na abertura e nos sonhos, e visíveis apenas para Mie e o espetador, simbolizam o trabalho realizado no inconsciente. No caso da personagem, trata-se do trabalho de lembrar-se, que eventualmente lhe proporciona um ancoradouro na realidade.
Página do diário.
Outro tema utilizado para representar o estado de espírito da personagem é o Mal de Alzheimer, doença que acomete seu pai, Walter (François Beukelaers), e coloca ambos, de certa forma, na mesma situação, criando um vínculo maior entre os dois. Em um de seus sonhos, Mie vagueia por uma biblioteca repleta de livros, até deparar-se com uma seção completamente vazia. Esta biblioteca é um retrato de sua memória, como ela era antes do acidente e como ficou depois. A visão de Vronsky, pronto para queimar seus livros de recordações, representa não apenas os fatos esquecidos, mas também os fatores que a fazem esquecer.
O título do episódio 7, Wally, é uma referência ao personagem da série de livros intitulada Onde Está Wally? Aqui ele tem um sentido mais amplo, pois Wally era um coelho que Mie tinha quando criança. Como ele aparece em seus sonhos de forma recorrente, ela compara a forma como tratava o coelho com a maneira como cuida da filha. A comparação a faz ter dúvidas sobre sua capacidade de ser uma boa mãe. Qual a conexão deste sentimento com o desaparecimento de De Gueest? Se substituirmos a palavra Wally, temos a pergunta mais importante da trama: Onde Está De Gueest? O game show do sonho no começo do penúltimo episódio, Madeira para as Árvores, enfatiza a premência de responder esta pegunta. Enquanto De Gueest não for encontrado, ela não poderá deixar o hospital.
Além das imagens, são várias as citações utilizadas por Vronsky para ilustrar determinados momentos. Uma de suas primeiras citações é de Mortiça Addams: “O que é normal para uma aranha é um grande caos para a mosca”. Com a citação, a ambiguidade do quadro atual de Mie é enfatizado, pois quando Vronsky tenta se apresentar, ela fica hesitante. Seu estado não é normal, mas é normal para alguém em seu estado esquecer quem é. No terceiro episódio, ele cita o paranormal americano Edgar Cayce. “Sonhos são as respostas de hoje às perguntas de amanhã.” Dessa forma, ele tenta fazer Mie refletir sobre o porquê de estar sonhando frequentemente com alguém chamado Bob. No sexto episódio, Segredos do Passado, uma frase de Anna Karenina mostra o que ele pensa sobre a desoladora mentira que Mie e sua família haviam experimentado. “As famílias felizes são todas parecidas. Mas as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira.” O episódio final abre com uma frase de George Sand: “Não se pode arrancar uma página da vida, somente jogar o livro inteiro no fogo.” O pensamento sinaliza que embora não seja possível mudar o passado, podemos tomar decisões radicais (talvez fatais) que nos livrem das consequências dos atos do passado.
Marcada por voltas e reviravoltas, Tabula Rasa é como uma caixa de pandora que o espectador abre um pouco a cada episódio. Embora a caixa esteja repleta de surpresas assustadoras e revelações chocantes, ela também guarda a única esperança da personagem de reescrever sua vida e recomeçar do zero, apagando as inscrições maléficas do passado. A habilidade da produção em manter o espectador sempre curioso e alerta garantiu o sucesso da série. Porém, apesar da excelente acolhida, a roteirista Malin-Sarah Gozin declarou a Nieuwsblad, em dezembro de 2017, que até aquele momento não havia nenhum plano para uma nova temporada. Afinal, a estória de Mie está encerrada.

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