To The Ends Of The Earth: Uma Viagem Interior


Por Flávia Furquim
Nesta minissérie sobre uma viagem marítima não há bandidos ou mocinhos, heróis ou psicopatas. Não há grandes reviravoltas ou cliffhangers e a história não avança num ritmo alucinante ou cômico ou dramático. E acho totalmente compreensível se você, leitor, não conseguir assistir até o fim do primeiro episódio, já que nada realmente significativo acontece antes dele chegar na metade. Nada, é claro, além de mostrar a precariedade das condições do navio, o desconforto e o quanto esta viagem será difícil, angustiante e até mesmo nauseante, tanto para os personagens quanto para o telespectador.
Mas, se insistir, e se histórias que mostram pessoas cheias de peculiaridades convivendo umas com as outras em situações limite são do seu agrado, talvez possa apreciar esta adaptação da obra de William Golding, escritor famoso por seu livro O Senhor das Moscascujo tema principal é a luta pelo poder dentro da sociedade retratada na história de um grupo de meninos perdidos em uma ilha.
Já em To The Ends Of The Earth (disponível no Netflix), uma trilogia publicada durante a década de 1980 e composta dos livros Rites of PassageClose Quarters e Fire Down Below, que são os títulos de cada um dos três episódios da minissérie, o tema principal é o convívio entre diferentes classes sociais e o processo de amadurecimento emocional de um rapaz no início do século XIX.
Edmund Talbot (Benedict Cumberbatch) é um jovem aristocrata viajando para Austrália num antigo navio de guerra, transformado em navio de passageiros, com o objetivo de ocupar um cargo no gabinete do governador, um emprego indicado por seu padrinho, uma pessoa altamente influente. Ele lhe pede que escreva um diário, relatando tudo o que puder sobre a viagem e as pessoas à bordo, com intuito de estimular a capacidade de observação do afilhado.
Edmund Talbot
Passageiros e tripulação formam um grupo muito heterogêneo mas representativo da sociedade britânica da época e, através do diário de Talbot, acompanhamos o esforço de cada um para suportar as dificuldades do longo confinamento, as diferenças de opinião e atitudes e os perigos de atravessar o globo terrestre numa velha embarcação.
Em Rites of Passage acontece uma morte e o capitão Anderson (Jared Harris) pede que Talbot testemunhe a investigação, já que ele é a figura de autoridade mais importante entre os passageiros.  Em Close Quarters, o navio enfrenta uma calmaria e a perspectiva de batalha com os franceses, com quem estão em guerra. Um inusitado baile acontece em pleno oceano e Talbot sucumbe a uma paixão instantânea por Marion Chumley (Joanna Page). Contudo, a viagem se arrasta, o navio sai de rumo e parte da quilha se desprende do navio e afunda. O pânico geral causa uma nova morte.
A história se conclui no terceiro episódio, Fire Down Below, que apresenta um casamento e a rivalidade entre dois tenentes, que debatem sobre a melhor maneira de consertar um mastro partido numa tempestade. Talbot faz amizade com o tenente Summers (Jamie Sives) e, a seu convite, passa a auxiliar na vigília noturna. Após um último grande perigo, chega finalmente a seu destino.
A narrativa se movimenta a partir dos desafios da situação. Talbot é um jovem idealista, ingênuo e bem-humorado, mas inexperiente fora do ambiente em que nasceu e cresceu. Totalmente identificado com os valores e costumes da sociedade de então, exibe uma atitude arrogante que não vem de uma má índole. É apenas o resultado de uma vida fácil, de quem está acostumado a ser servido.
Ao entrar em contato com pessoas muito diferentes de si mesmo, Talbot mostra habilidade social e conversação afável típica da alta sociedade, buscando interagir com as pessoas com sinceridade e entusiasmo mas, ao mesmo tempo, mantendo a distância e respeitabilidade características do cavalheirismo britânico.
Entre os passageiros estão o Reverendo Colley (Daniel Evans), um homem tímido e ansioso por agradar, que tenta fazer amizade com Talbot, sem muito sucesso; Miss Graham (Victoria Hamilton), a filha de um clérigo que se ressente do fato de precisar trabalhar como governanta; o Sr. Brocklebank (Richard McCabe), um velho pintor viajando com a esposa (Denise Black) e a filha Zenobia (Paula Jennings); e o Sr. Prettiman (Sam Neill), um intelectual ativista e ateu.
Talbot e o Capitão Anderson
Na tripulação, além do Capitão Anderson, um homem reservado, anti-religioso, com atitudes ditatoriais e que prefere a companhia das plantas em sua cabine à dos passageiros, estão o tenente Charles Summers e o tenente Deverel (JJ Feild), jovem mais interessado na bebida e nas glórias das batalhas do que em servir num navio de passageiros. Atendendo-o em sua cabine, está Wheeler (Brian Pettifer), um senhor atencioso, marujo experiente e prestativo que ajuda Talbot em todas as suas necessidades.
É interessante observar que, nesta história, não existe uma tentativa de educar o leitor ou telespectador nos valores do “politicamente correto”. Os personagens são apresentados de maneira crua e sem idealizações. São todos preconceituosos, cada um ao seu modo, e possuem igualmente virtudes e defeitos.
A tensão resultante da interação entre os personagens, assim como na vida real, é o que gera os conflitos e as dificuldades. E as mudanças que acontecem nestas interações, decorrentes do amadurecimento pessoal, das amizades e inimizades que se estabelecem e da maneira como cada um enfrenta as situações encontradas são o ponto focal da trama.
Talbot, que inicia a viagem com ingenuidade e idealismo quase infantis, descobre que ter uma posição de autoridade acarreta responsabilidades perante outras pessoas, que olham para ele com respeito mas também como um modelo. Percebe que, se não fosse por sua apatia e indiferença pelo que acontecia à bordo, poderia ter contribuído para impedir as mortes que aconteceram.
Sua auto-imagem se transforma e percebe coisas sobre si mesmo que não aprecia. Esta percepção muda seu comportamento, que vai de uma descontraída atitude de auto-importância, passa pela sensação de se sentir desajeitado e incapaz de agir com eficiência até chegar numa madura aceitação das responsabilidades que seu cargo exigirá dele.
Tenente Summers
Sua amizade com o tenente Summers também contribui para isto. Summers é um homem altamente perspicaz e perceptivo. Vindo da classe baixa, começou como um marujo e ascendeu ao posto de tenente por seu mérito, por sua capacidade de observação e sua competência. Não utiliza suas habilidades para proveito pessoal, mas para aprimorar-se na profissão. Possui o que Talbot não tem, auto-crítica e humildade suficientes para questionar suas próprias motivações ocultas, sobretudo no embate com o tenente Benét  (Niall MacGregor).
Talbot também se aproxima do Sr. Prettiman e de Miss Graham, pessoas que não apenas não pertencem à sua classe social, mas possuem idéias políticas diferentes das suas, e acaba desenvolvendo respeito e admiração por eles, travando discussões filosóficas que ajudarão a passar o tempo perto do final da viagem.
Os temas principais da obra de Golding são a moralidade, religiosidade e a questão do bem e do mal no ser humano. Para isto, coloca seus personagens em situações extremas ou difíceis. Em O Senhor das Moscas, os meninos perdidos em uma ilha revertem para a selvageria, destruindo-se pelo poder. Em To The Ends Of The Earth, Golding parece crer que a convivência humana, ainda que conflituosa, pode sobreviver aos impulsos regressivos que habitam em cada um de nós.
A história questiona inicialmente a indiferença com o próximo, o desejo de humilhar e impor-se aos outros e o poder da vergonha. Apenas um verniz social mantém a convivência entre desconhecidos que estão confinados num ambiente que se desfaz e ameaça sua sobrevivência. Durante a viagem, os relacionamentos evoluem e o navio vai se deteriorando. Acidentes e enfermidades, atos de desespero e hostilidade se entrelaçam com gestos de lealdade e amizade, que provam ser mais eficientes para garantir o sucesso da jornada.
Sr. Prettiman
Os conflitos e os preconceitos entre as classes sociais não têm conseqüências trágicas, mas permeiam todas as cenas. O Capitão despreza os atos religiosos e se diverte em sabotá-los. O Sr. Prettiman vê a todos que não têm estudo como ignorantes e supersticiosos. Talbot cumprimenta Summers em sua habilidade de “imitar com perfeição os modos e o discurso de uma posição mais elevada”. Summers receia ser franco com Talbot por medo de que ele se vingue, usando sua influência com o capitão para prejudicá-lo.
A minissérie parece ser bem-sucedida ao transportar para a tela os temas básicos da obra de Golding. O mal-estar, proposital para o debate de suas idéias, dificulta acompanhar os primeiros momentos, mas a narrativa em forma de um diário, que fornece o ponto de vista de Talbot, nos aproxima de cada personagem. Estes podem ver no outro a personificação de características que admiram ou desprezam e a si mesmos como representantes da verdade, mas precisam uns dos outros para chegarem ao seu destino.
Miss Graham
Ao final, Talbot é um outro homem. Pede notícias dos companheiros de viagem por quem antes sentia apenas indiferença. Miss Graham aconselha Talbot a seguir com sua vida, como fizeram os outros passageiros, e a não aumentar o significado da viagem, apesar de sua longa duração. “A viagem não foi uma odisséia”, diz ela. “Não foi um modelo, emblema ou metáfora da condição humana. Foi apenas uma série de eventos.”
Talvez. Mas esta “série de eventos” reflete os pequenos e grandes dramas cotidianos da sociedade, quando se trata das diferenças individuais, espelhando de maneira interessante como os conflitos surgem e como podem desaparecer a partir da compreensão do outro como um ser distinto de nós mesmos mas, ao mesmo tempo, tão semelhante naquilo que todos temos em comum, nossa humanidade.

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